Fruto é ‘pérola’ da economia de Itaberaba e gerou R$ 45 milhões em 2023
Anna Rios
De cima do caminhão, com um caderno para anotar a quantidade de frutas que são organizadas em camadas de palha e serão transportadas para quilômetros dali, o agricultor Antônio Andrade, 52 anos, disse o que parece óbvio para todos os itaberabenses: “o abacaxi, hoje, para nós é tudo”. A história do fruto no município, distante aproximadamente 280 km de Salvador, tem mais de 50 anos e quem nasce em Itaberaba, desde muito cedo, aprende a reconhecer a importância da “Terra do Abacaxi”.
Agricultor Antônio Andrade, 52 anos. Captação: Anna Rios
No território do Piemonte do Paraguaçu, Itaberaba é o maior produtor de abacaxi da variedade Pérola na Bahia. A expertise e os esforços de quem trabalha com a cultura são traduzidos em números. De acordo com os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2023, foram mais de 24 milhões de frutos produzidos e o valor de produção ultrapassou os R$ 45 milhões.
O cultivo é predominante feito em pequenas propriedades, com terrenos inferiores a três hectares (30 mil metros quadrados) e a mão-de-obra, em maioria, vinda da agricultura familiar. A área colhida chega a 2.699 hectares e o rendimento médio corresponde a 16.473 frutos/ha. A produção é comercializada in natura para outras regiões do Brasil. O Sudeste é o maior comprador, com destaque para os estados de São Paulo e Minas Gerais.
Reprodução: IBGE.
Reprodução: IBGE.
Ser o responsável por quase metade do abacaxi produzido em toda a Bahia requer tempo, investimento, técnica e muito trabalho. Entre os mais de 65 mil habitantes de Itaberaba, ao menos 6 mil estão envolvidos com a abacaxicultura, desde o preparo do solo até a comercialização. “Antigamente a gente saia daqui pra ir trabalhar fora, largava a família em casa, ia tudo se mandar no mundo, trabalhar em São Paulo e tudo. E hoje não. Graças a Deus nós ‘tá’ trabalhando aqui mesmo, dependendo da fruta da gente”, contou Antônio Andrade.

Em Itaberaba, o abacaxi representa o desenvolvimento econômico, mas também simboliza a possibilidade dos filhos da terra não precisarem mais ir embora para viverem bem.
Pérola no semiárido
O abacaxizeiro é uma planta de clima tropical ou subtropical que requer condições específicas para o crescimento de qualidade. As temperaturas devem variar entre 22 ºC e 32 ºC, com chuvas bem distribuídas e alta incidência de luz solar. O solo, por sua vez, precisa estar drenado e fertilizado com matéria orgânica, nitrogênio, fósforo, potássio e micronutrientes.
Apesar das temperaturas elevadas, estação seca bem definida e chuvas irregulares, características do semiárido baiano, a fruta com coroa encontrou em Itaberaba um bom chão para reinar. Nas palavras do técnico agrícola aposentado da extinta Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola (EBDA), José Bezerra, 70 anos, o abacaxi da variedade Pérola “é resistente às questões climáticas”. Esse tipo de planta, em uma análise fisiológica, tem auto-defeso. Isso quer dizer que, “quando chega no verão, quando amanhece o dia e o sol abre, o abacaxi fecha os estômatos. Os estômatos das plantas são como se fossem os nossos poros. É por isso que ela se mantém verde”, explicou.
Durante a década de 1970, José Bezerra fez parte da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural da Bahia (Emater-BA), antecessora da EBDA, e acompanhou o início do plantio na região. Os primeiros abacaxizeiros surgiram nos quintais das casas da comunidade do Barro Branco. Nessa época, o cultivo de milho, mandioca e feijão — culturas agrícolas tradicionais — e a criação de gado e caprinos para a produção de leite, carnes e couro — pecuária de subsistência — sustentavam a economia do município.
Em uma visita ao distrito, Bezerra conheceu cinco agricultores que, mesmo plantando “de forma empírica, sem muita tecnologia e acompanhamento”, tinham melhores condições econômicas comparados aos que viviam de outros manejos. A partir de então, a Emater-BA e a unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em Cruz das Almas, firmaram uma parceria para dar apoio técnico aos produtores e desenvolver a abacaxicultura local.
Ouça Bezerra:
A ascensão do abacaxi em Itaberaba ocorreu em paralelo ao declínio produtivo do município Coração de Maria, a 111 km de Salvador, até então o maior produtor do estado. A incidência de fusariose, doença causada pelo fungo Fusarium guttiforme, foi a principal causa da perda de frutos, mudas e plantas e, ainda hoje, é a maior ameaça à exploração do abacaxi no Brasil.
A combinação entre as pesquisas da Emater-BA e da Embrapa, atreladas ao conhecimento dos lavradores itaberabenses, foi fundamental para a adoção e aprimoramento de tecnologias que estimularam o crescimento da cultura agrícola. Os resultados foram tão positivos que pareciam, para eles, uma surpresa divina. Bezerra relembra o comentário espirituoso de um colega pesquisador: “Deus pegou um pedaço de terra, jogou de lá e caiu aqui em Itaberaba, para dizer: ‘plante abacaxi!’”.
Em meio as crenças e brincadeiras que envolvem a produção rural, o abacaxi nasce como um “milagre”. Quando a safra é saudável e bem aproveitada, o fruto assegura dias prósperos para uma população que, por muito tempo, trabalhou para sobreviver.
O agricultor, comerciante e atravessador, Moisés Silva, 66, vende cerca de 600 frutas por semana.
Mãos em cada etapa do ciclo
O plantio tradicional de Itaberaba é feito na condição de sequeiro, uma técnica para cultivar em áreas com baixa pluviosidade, sem utilizar irrigação artificial. A expressão deriva da palavra “seco” e refere-se à plantação em solo firme. Nesse cenário, o ciclo natural do abacaxi é de 18 a 24 meses, dividido em etapas essenciais para o aproveitamento racional dos recursos naturais e a colheita de bons frutos. O agricultor Antônio Andrade atua no ramo há quase 20 anos e garante que “o abacaxi é para quem tem coragem”.
Imagem: Anna Rios
Tratando-se de pequenos produtores da agricultura familiar, a coragem pode ser entendida como a decisão de investir com pouco recurso ou apoio financeiro; a constância no cuidado; e o enfrentamento aos desafios esperados e inesperados. É um atributo que a labuta no dia-a-dia da roça, da estrada e do comércio ensina a ter. Em alguns casos, a forma de trabalhar é passada entre gerações.
Januário da Silva tem 73 anos e é natural de Ipirá-Ba, a 210 km da capital. Há 25 anos chegou em Itaberaba para lidar com a fruta mais falada da região. Foi por meio da renda com a agricultura e da comercialização para cidades vizinhas que criou 14 filhos. “Já lutei muito com abacaxi, mas hoje em dia estou deixando para os meus filhos ‘lutar’. Já vendi em Ruy Barbosa, Mairi, Baixa Grande, Feira de Santana, aqui em Itaberaba, em tudo quanto é canto”, ressaltou enquanto atendia um cliente e outro na barraca da feira livre.
Os abacaxis vendidos por Januário são da roça do filho, Adailton da Silva, que plantou, em 2024, quatro tarefas, equivalentes a mais ou menos 12 mil metros quadrados. O lucro obtido foi de R$ 70 mil, graças ao processo de cultivo bem executado.
Januário da Silva e o filho Adailton da Silva. Fotografia: Anna Rios
De acordo com manual da EBDA e da Embrapa, a escolha do terreno é o primeiro passo para uma safra bem sucedida.O espaço selecionado deve ser plano ou de pouca declividade. A textura média da terra precisa ser areno-argilosa ou arenosa. Após a coleta e análise química e física de amostras do solo, seguindo as recomendações da assistência técnica ou dos laboratórios referenciados, o passo seguinte é a adubação do abacaxizeiro.
Para o preparo do soloem áreas de primeiro cultivo é feita a roçagem, destoca parcial, encoivaramento e queima controlada, atentando-se para a legislação vigente. Em áreas já cultivadas, realiza-se a destoca, roçagem, aração e gradagem. Antes da implantação da cultura, a acidez do solo é corrigida com calcário dolomítico, que também fornece nutrientes importantes, como cálcio e magnésio, naquilo que é conhecido como correção da acidez do solo, ou calagem.
A seleção das mudas também é uma etapa fundamental. Elas têm que derivar de plantas sadias e livres de pragas ou doenças e, preferencialmente, vir de lavouras com características genéticas desejáveis. O técnico José Bezerra ressalta a importância de mergulhá-las em soluções de fungicidas para identificar se há fusariose. Além disso, recomenda a seleção por tamanhos, acima de 20 ou 40 cm para mais vigor e uniformidade do ciclo produtivo.
As orientações da assistência técnica são essenciais aos produtores também para o cultivo e durante o desenvolvimento do abacaxi. A tecnologia do espaçamento, por exemplo, que consiste no adensamento dos plantios para proporcionar maiores produções por área; a indução floral, que antecipa a floração e época de colheita do fruto; e o monitoramento do uso de agrotóxicos para exterminar pragas e doenças, e de herbicidas para controlar o mato ajudam a ampliar a experiência com uma abacaxicultura mais sustentável.
Os frutos são cobertos com jornais, em períodos de intensa irradiação solar, para evitar manchas e queimaduras na casca. A proteção também funciona como uma barreira física contra insetos e outros agentes. Fotografia: Anna Rios
As tecnologias aplicadas auxiliam, inclusive, na diminuição do tempo para a colheita do abacaxizeiro natural e o manuseio do fruto no momento do corte. Fábio Leite, 28 anos, tem a própria lavoura de abacaxi, mas trabalha como cortador há cinco anos. “O dia-a-dia da gente é isso aí, todo dia carregando fruta da lavoura da nossa terra”, afirmou.
Enquanto Fábio corta o abacaxi, os batedores de balaio e carregadores organizam cada unidade no caminhão.
José Roberto tem 24 anos e bate balaio há três anos e meio. Todos os dias ele acorda às 4h20, prepara o que comer e vai para o ponto aguardar a caminhonete que levará até a roça da vez. A rotina é essa, de domingo a domingo. “É um pouco puxado, mas a gente tem que trabalhar todo dia para sustentar a família”, disse.
Ualas Cardoso, 31 anos, é mais recente no ramo, mas já experimenta o cotidiano dos carregadores mais antigos. Antes do abacaxi, Ualas tomava conta de uma fazenda da região, até que recebeu o convite de um compadre para trabalhar na safra há cinco meses. “A rotina é puxada. Tem hora de saída, mas não tem hora de volta. Enquanto não carregar o caminhão, tem que ‘tá’ na ativa”, revelou.
Trabalhadores a caminho da zona rural, entre 5h30 e 6h da manhã. Quem dirige uma das caminhonetes é o agricultor Janaiton de Oliveira, 55 anos. Fotografia: Anna Rios
Atravessadores
A espera para encher o caminhão também é a do agricultor Cassiano Mandinga Filho, 43, que lida com a abacaxicultura há mais de 15 anos e este ano produziu em torno de 50 mil frutas. Apesar de viver dias de abundância produtiva e considerar que “chegou a hora do plantador”, já viu de perto e sentiu o incômodo de um período seco em que nada crescia na terra. Hoje, ele trabalha em uma pequena propriedade e complementa a renda com a criação de gado para a venda de leite.
Imagem: Anna Rios
A maioria dos produtores depende de atravessadores para estabelecer um elo com o mercado consumidor e conseguir vender sem se preocupar com o transporte e a logística de distribuição dos frutos. No entanto, a relação que deveria ser um facilitador da cadeia produtiva, muitas vezes entra em desequilíbrio quando o atravessador paga preços baixos pelo abacaxi e vende a um valor muito superior no mercado. Além disso, podem surgir outros problemas relacionados à venda antecipada e o “contrato de boca”. Cassiano Filho conta que já perdeu uma safra inteira, porque o atravessador não cumpriu a parte do acordo e as frutas amadureceram no pé, sem comprador.
Imagem: Anna Rios
O ciclo do abacaxi é demorado, mas o cuidado em cada uma das etapas permite a oferta do fruto o ano inteiro. O frete para outras regiões e Centrais de Abastecimento (CEASAs) se destaca economicamente, mas no comércio local o fruto também tem um lugar especial e é bastante procurado pelos moradores e visitantes. Na indústria de polpas, supermercados, feira livre e até nas barracas de beira de estrada, falou em “abacaxi de Itaberaba”, a venda está garantida.
Cooperativa de agricultura familiar
A Cooperativa Nacional de Produção e Agroindustrialização (Coopaita) foi criada em 2001 com o objetivo de fortalecer a cadeia produtiva do abacaxi na região de Itaberaba. A proposta de organização dos produtores e o acesso ao mercado sem intermédio dos atravessadores resulta em um aproveitamento mais justo dos benefícios econômicos da abacaxicultura para os pequenos agricultores. Atualmente, são 116 famílias cooperadas, a maioria pertencente à zona rural do Couro Seco e que arrendam terras para cultivar.
Além da comercialização, a Coopaita fornece assistência técnica, orienta sobre os manejo adequado, facilita os acesso aos insumos com preços reduzidos por meio de compras coletivas e incentiva a produção sustentável. “A gente tem, também, uma parceria muito forte com a Embrapa no desenvolvimento de novas mudas. Porque, a cada ano que passa, tem a necessidade de ter uma fruta que seja mais resistente às condições que a gente tem aqui no semiárido. E que use cada vez menos insumos e defensivos”, explicou o assistente administrativo, Pedro Alves.
O uso de máquinas e equipamentos nas lavouras é uma alternativa que passou a ser discutida para melhorar a produtividade e complementar o esforço humano. O agricultor cooperado, Manoel Santos, 46, relatou: “hoje, a maior dificuldade é a mão-de-obra. A mão-de-obra da gente é, ainda, nada mecanizada. Precisamos avançar mais nessa parte de mecanização”. Isso ocorre, em parte, pela falta de disponibilidade de trabalhadores em relação à demanda.
A cooperativa desenvolve atividades da agroindústria que transformam os frutos fora do padrão comercial em produtos processados. O abacaxi desidratado e o liofilizado — que mantém o mesmo valor nutricional da fruta in natura — proporcionam um retorno financeiro maior aos cooperados. “Na prática, se não existisse a cooperativa, ele ia vender por um preço muito abaixo para polpas de frutas, indústrias”, disse o gerente administrativo, Daniel Cerqueira.
Reprodução: Instagram da Coopaita (@coopaita)
O mais doce do Brasil?
No vídeo aparecem, por ordem: Ilária Bispo, Januário da Silva, José Roberto, Ualas Cardoso e Fábio Leite. Imagem: Anna Rios
A doçura do abacaxi está atrelado ao teor de açúcar medido em graus Brix e varia conforme o manejo e as condições favoráveis de cada região. O solo de Itaberaba é rico em potássio e micronutrientes que garantem um sabor acentuado ao fruto e faz com que seja reconhecido, pelo senso comum, como o mais doce do Brasil.
Imagem: Anna Rios
SAIBA MAIS:
Manual “Cultura do Abacaxi: Sistema de Produção para a Região de Itaberaba, Bahia” disponível em: https://www.infoteca.cnptia.embrapa.br/infoteca/handle/doc/898104