Alimento ritual associado à orixá Iansã, iguaria é oportunidade de geração de renda para famílias e associação da categoria reúne mais de 4 mil filiadas na Bahia
Gilvan Costa
Fotos: das baianas de Cachoeira-BA do fotógrafo Caíque Fialho; e de Neuza Ribeiro, de Santo Amaro-BA, de Gilvan Costa
O ofício das baianas de acarajé recebeu em 2024 a validação do pleno do Conselho Estadual de Cultura (CEC), que reconhece a contribuição valiosa à cultura baiana proporcionada por milhares de mulheres que, dia após dia, vendem o quitute nas ruas das cidades. Em 2012, essa ocupação foi agraciada com o título de Patrimônio Imaterial da Bahia, concedido pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC), que deve ser revalidado a cada cinco anos.
Também é considerada Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, reconhecida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) desde 2005. A recente declaração do acarajé como patrimônio cultural do Rio de Janeiro, por meio da Lei 10.157/23, gerou controvérsias e descontentamento entre os baianos. Contudo, a essência do acarajé como um ícone da Bahia está firmemente enraizada em sua história, e Salvador já o reconhece como patrimônio cultural há mais de duas décadas.
O acarajé é uma iguaria que remonta às tradições da culinária africana e afro-brasileira. A história e a origem estão profundamente entrelaçadas com a cultura da Bahia. Em 2002, a Lei nº 6138 o reconheceu oficialmente como Patrimônio Cultural de Salvador, a capital baiana. Esse bolinho, feito de massa de feijão-fradinho, cebola e frito em azeite de dendê, tem suas origens na língua iorubá, na qual “acará” se traduz como “bola de fogo” e “jé” significa “comer”.
Vídeo: Gilvan Costa
Mulheres escravizadas
A coordenadora nacional da Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Mingau, Receptivos da Bahia ( ABAM), Rita Maria Ventura dos Santos, explicou a origem dessa ocupação aqui no Brasil. “A história das baianas de Acarajé começou a mais de 300 anos atrás com a vinda das mulheres escravizadas para o nosso país, as mulheres vieram da África escravizada para cá e nessa vinda elas trouxeram o acará, que hoje é chamado de acarajé. Elas começaram no Rio de Janeiro, Bahia e Recife. Foram nesses três estados que se começou a prática de fazer o acará. Aqui as mulheres escravizadas saíam nas ruas para mercar o acará, normalmente com o filho do patrão nas costas, esse dinheiro era entregue aos patrões”, disse.
São aproximadamente 4 mil baianas filiadas à ABAM. De acordo com Rita Santos, esse é um ofício predominantemente feminino, que é passado de mãe para filha. Mas, com o passar dos anos, muitas mulheres tiveram somente filhos homens. E muitos desses filhos seguiram o passo das mães. Além disso, a coordenadora da ABAM explicou que o acarajé foi introduzido na religião de matriz africana como sendo uma oferenda para Iansã e o abará uma oferenda para Xangô. “E as mulheres de Oyá e de Xangô iam para a rua mercar para fazer suas obrigações, elas já mercavam para comprar as alforrias. Com o passar dos anos, já depois de libertas, elas começaram a mercar para fazer suas obrigações dentro dos terreiros. Com isso, se viu que elas também poderiam manter suas famílias. Aí foi que ele começou a ser vendido para também custear sua casa”, completou.
Ouça trecho da entrevista de Rita Santos:
As baianas do acarajé são mulheres que se dedicam ao tradicional ofício de vender acarajé e outros pratos da culinária africana e afro-baiana. Predominantemente negras e com uma forte ligação às religiões de matriz africana, elas conseguiram formalizar sua profissão junto aos órgãos públicos somente em 2012.
O filho de santo do terreiro de Umbanda em Feira de Santana, Pablício Barbosa, demonstra respeito pela cultura e religiosidade dos alimentos. “São os alimentos que é uma força energética que dão sustentação tanto ao espírito quanto ao corpo. Os alimentos sagrados alimentam as divindades, as entidades e também nós, humanos, que estamos ali enquanto filhas e filhas de santo. Para além disso, a comunidade que está em torno do terreiro muitas vezes é paupérrima. E só se alimenta adequadamente quando eu vou para o terreiro, uma festividade, um ritual onde lá é disponibilizada e ofertada aquelas comidas”, afirmou.
Pablício Barbosa se mostra orgulhoso pela valorização do acarajé como patrimônio cultural, lembrando do preconceito e da falta de respeito que esse alimento era tratado no passado. “E é um alimento que vinha sendo desrespeitado quando evangélicos colocavam na bancada de seus tabuleiros como Bolinho de Jesus e a gente sabe que isso é irreal, porque Jesus não tem bolinho, o bolinho é o acará que é de Iansã da cultura Iorubá. A gente fica muito feliz quando há esse reconhecimento com tudo que envolve a cultura e religiosidade afro-brasileira”, reiterou.
Ouça aqui trecho da entrevista de Pablício Barbosa:
Memória afetiva
Além de questões da religiosidade, Pablício Barbosa considera o acarajé como memória afetiva porque conta que toda vez que como o acarajé lembra da mãe com saudades.
“Minha mãe tinha uma cultura lá em casa toda vez que ela recebia o salário de professora, fazia os pagamentos. Voltava para casa com um acarajé, uma cocada da baiana e esse acarajé ela comprava sempre em uma barraca que ficava em frente ao banco do Bradesco, na praça principal de Cruz das Almas, de uma baiana chamada Rosa, uma senhora que fazia um acarajé dos melhores que eu já comi até hoje. Olha que essa coisa do alimento traz aquela coisa da memória afetiva, né? E eu, como sou apreciador do acarajé, sempre tento comparar com aquele acarajé de Rosa que minha mãe trazia todo mês, enfim, para casa, e é difícil achar um acarajé que chegasse próximo do sabor daquele acarajé de Rosa, então alimenta também as memórias, pelo menos para mim”, salientou.
Com a crescente popularidade e o potencial de um negócio próspero, várias mulheres empreendedoras, que não se identificam com religiões de matrizes africanas, têm visto no acarajé uma oportunidade de investimento no campo do empreendedorismo.
É o caso de Neuza Ribeiro, moradora do município de Santo Amaro, que relata sobre sua trajetória como empreendedora. “Eu não digo que eu sou Baiana do Acarajé. Por que eu não acredito no sincretismo da religião. Então é por isso que eu digo que eu sou a vendedora do acarajé. Escolhi vender acarajé devido a um momento muito difícil em minha vida. Uma colega minha chamada Iara foi quem me botou nesse ramo, ela me empurrou, ela me atiçou. Ela aí me disse, você vai a partir de hoje fazer acarajé. Conheço uma moça que faz e é independente e você vai conseguir. Aí foi que peguei o dinheiro emprestado na mão de uma amiga. Foi que eu comprei o moinho manual. comprei azeite, comprei camarão e foi porque eu precisava mesmo, porque eu necessitava ganhar um dinheiro para viver minha vida”, contou.
Na cidade histórica da Cachoeira, a 110 Km da capital, duas baianas são exemplos de empreendodoras do ramo também e se dedicam a caprichar nos bolinhos para atrair clientes. Eunice Pereira, conhecida como Nice do Acarajé, que vende na Praça 25, e Sueli Silva, conhecida como Baiana do Sax.
Empreendedorismo
Nos últimos anos, o empreendedorismo feminino tem ocupado um espaço cada vez mais significativo e relevante no Brasil. De acordo com os dados do Monitor Global de Empreendedorismo 2023 (Global Entrepreneurship Monitor – GEM), entre os 47,7 milhões de brasileiros que planejam abrir um negócio até 2026, as mulheres são responsáveis por 54,6%. No entanto, muitas delas enfrentam desafios para conseguir linhas de crédito com condições favoráveis ou obter acesso a investimentos de risco. Uma pesquisa recente realizada pelo Instituto Rede Mulher Empreendedora revela que, em 2023, 42% das mulheres empreendedoras que buscaram crédito tiveram seus pedidos rejeitados.
Dada a importância do empreendedorismo feminino para a redução das desigualdades, a promoção da diversidade e a contribuição para a economia, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu, em 2014, o dia 19 de novembro como o Dia do Empreendedorismo Feminino.
O crescimento da presença das mulheres no empreendedorismo contribui significativamente para uma maior diversidade no panorama econômico, fator crucial para o desenvolvimento de soluções mais inovadoras e eficientes diante dos desafios atuais. A participação delas se tornou um elemento essencial para o avanço e a inovação em diversos setores da economia.
A Baiana do Acarajé está entre as primeiras ocupações das mulheres empreendedoras no Brasil, pois foi a primeira a ter autorização para levar seu tabuleiro às ruas e vender seu produto, com o intuito de adquirir sua liberdade. O reconhecimento dessa figura na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) possibilita, entre outras vantagens, que a pessoa, ao se registrar como microempreendedora individual (MEI), tenha acesso a cobertura em caso de acidentes de trabalho. Isso ressalta a relevância desse patrimônio cultural nas esferas da economia, da religião e do turismo.
Confira entrevista de Rita Santos (ABAM) ao site Bahia tem dendê
O que é que a Baiana Diz?

Uma pesquisa realizada no Mestrado de Comunicação da UFRB virou dissertação e depois o documentário. Foi um trabalho desenvolvido pela Relações Públicas, produtora cultural e consultora em gestão cultural e políticas da diversidade, Renata Dias Oliveira.
A dissertação O que é que a baiana diz? Enunciações de identidade e memória das baianas de acarajé, defendida em 2022, teve a orientação da professora do PPGCOM/UFRB Daniela Abreu Matos, doutora eem Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Renata Dias Oliveira atualmente é pesquisadora de Culturas Audiovisiais no Programa de Pós Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).