As filhas da Mãe África: Irmandade da Boa Morte e a afro-religiosidade

Confraria manteve laços estreitos com a capital Salvador, e desde então sobrevive no Recôncavo dos canaviais — importante polo econômico baiano nos séculos XIX e XX.

Por Giovane Alcântara

Irmã da Boa Morte na procissão tradicional dos Festejos. Foto: Thainá Dayube.
História

Fundada em Salvador, por volta de 1820, a Irmandade da Boa Morte é uma das confrarias mais antigas e importantes do País. A instituição migrou para Cachoeira e sua história é construída, principalmente, pela memória afetiva das irmãs que participam. A Irmandade da Boa Morte é, de antemão, um núcleo de resistência feminina ligada e devota à Nossa Senhora da Glória.

A migração da Irmandade da Boa Morte da região da Barroquinha, em Salvador, para Cachoeira se dá devido a questões políticas, como a urbanização e a política higienista do Estado (vale ressaltar que, dada à época, as manifestações negras eram consideradas de baixo valor, degradantes, primitivas), nos anos 1850, período onde a indústria de cana-de-açúcar estava em alta e os senhores de engenho mantinham muito prestígio no alto clero baiano.

As primeiras irmãs da Irmandade teriam sido negras alforriadas da Nação Ketu, que possuíam certo prestígio financeiro, por isso eram chamadas de negras do Partido Alto. Mas, por inúmeras questões que estão envolvidas na história da Irmandade da Boa Morte[1], não se sabe ao certo quais nações faziam parte da organização.

Atualmente, a casa que serviu como sede para a Irmandade é conhecida como casa-estrela (devido uma estrela feita com granito na porta da residência). Segundo Armando Alexandre Costa Castro, em A Irmandade da Boa Morte: Memória, Intervenção e Turistização da festa em Cachoeira, Bahia, foi nessa casa que foram iniciadas, sob a responsabilidade de Ludovina Pessoa, as primeiras filhas-de-santo do terreiro Zoogodô Bogum Malê Seja Undê.

HIERARQUIA OU SENHORADO

A Irmandade da Boa Morte é composta por mulheres negras, com mais de 50 anos de idade. A Irmandade divide, hierarquicamente, seus cargos em: irmãs-de-bolsa, irmãs, tesoureira, provedora, procuradora-geral, escrivã e a juíza-perpétua. Os cargos são rotativos e qualquer uma das irmãs podem exercê-lo desde que sigam todos os ritos e processos envolvidos — como, por exemplo, a abstinência sexual, o isolamento, entre outras coisas.

A juíza-perpétua é a pessoa responsável pela administração da confraria. É o maior cargo dentro da Irmandade, geralmente exercido pela irmã com mais tempo de participação.

EMBATE COM A IGREJA CATÓLICA

Foi na gestão de Dom Lucas Moreira Neves, Arcebispo de Salvador durante a década de 80, que a Irmandade da Boa Morte enfrentou um dos seus maiores embates com a Igreja Católica, que chegou às vias judiciais.

Na mesma década, um outro episódio — conhecido como o “sequestro das santas” — abriu lugar para uma discussão na comunidade política baiana. Em 9 de novembro de 1989, o Pároco da época foi acusado de ter confiscado duas santas que faziam parte da Irmandade, logo após os festejos e procissões que homenageavam Nossa Senhora da Glória e Nossa Senhora da Boa Morte.

O confisco das santas só terminou cerca de uma década depois, quando a Justiça ordenou que a Igreja Católica devolvesse as jóias, as imagens e outros pertences da Irmandade.

Segundo Wiltercia Silva de Souza, em O Sequestro das Santas: A Irmandade da Boa Morte e a Igreja Católica em Cachoeira, Bahia — 1989um outro fator para o desentendimento com a Igreja Católica foi a autonomia financeira e jurídica que a Irmandade da Boa Morte queria possuir. Como consta nos poucos documentos da Irmandade, a Igreja Católica, antes da festa da organização, arrecadava muito mais do que costumava arrecadar em um ano, e a Irmandade não costumava receber o dinheiro. A “solução” encontrada foi a criação de um estatuto registrado em cartório — feito realizado pela advogada negra e cachoeirana, Maria Celina Salla.

Em uma reunião realizada entre as irmãs e o pároco da época, registra-se um episódio de racismo. Segundo pesquisadores, o pároco local teria chamado as irmãs de “negras artistas da cultura, que nada tinham a ver com a cultura”. O episódio chamou atenção da comunidade cachoeirana e também do Movimento Negro, que saiu em defesa das irmãs.

Vale ressaltar que a Irmandade da Boa Morte não é vinculada, oficialmente, à Igreja Católica

Festa da Boa Morte em 2018. Foto: Camilla Souza.
VÍNCULO COM FAMÍLIA LUTHER KING

A batalha judicial com a Igreja Católica chamou atenção de políticos e de outras personalidades mundiais. É o caso da reverenda Bárbara King e do escritor e político baiano, Jorge Amado.

Cantarão para Nossa Senhora, que aqui chegou com Jesus nas caravelas lusitanas, dançarão para os orixás, que vieram na viagem de espanto nos navios negreiros: aqui se misturaram. A Virgem Maria, Iemanjá e Mani, a raiz sagrada dos indígenas, se misturaram e a cada dia se misturam mais — a cultura brasileira, meus ilustres! (“Tomo da cuia de esmoler”. Jorge Amado. Folha de São Paulo, 1995).

Na época, Jorge Amado usou do seu poder e influência política para conseguir a restauração dos prédios. Em 27 de setembro de 1995, escreveu para a Folha de S. Paulo o texto ‘Tomo da cuia de esmoler’, onde retrata o esforço em retomar e restaurar os prédios para entregar o bem às irmãs.

Irmã exibe a exuberância dos seus adereços. Foto: Camilla Souza.

Perto de fechar suas portas, a Irmandade da Boa Morte teve que ceder à turistização dos seus festejos. A ação externa de alguns agentes governamentais e o vínculo com alguns artistas e personalidades fizeram com que a confraria pudesse dar continuidade às suas atividades.

Em Cachoeira, alguns fatores dificultavam a permanência das irmãs na cidade. Podemos citar como exemplo a falta de uma política cultural pública voltada para a Irmandade, o número baixo de irmãs[2], a falta de uma sede fixa, entre outros.

Ainda segundo Armando Alexandre Costa de Castro, ações relacionadas à Irmandade da Boa Morte, aparecem catalogadas desde 1971, no Plano de Turismo do Recôncavo (PTR). Aspectos históricos, religiosos, etnográficos e culturais passaram a ser ressaltados e valorizados pela indústria turística.

Assim, a Irmandade da Boa Morte resguarda uma parte da memória de Cachoeira e de uma das primeiras irmandades negras do País. Mesmo com a turistização dos seus festejos e com todos os embates religiosos a confraria não deixa de embelezar as ruas da cidade heróica com suas indumentárias e com seus gracejos de fé.

Vida longa às filhas da Mãe África.

[1] A perda de documentos históricos é um desses fatores. Por ser muito antiga, e por muito tempo não possuir uma sede própria, muita coisa da Irmandade se perdeu com o passar do tempo.

[2] Durante um período a confraria chegou a ter apenas 20 irmãs.

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