Candomblé Elétrico completa 75 anos e se consolida como tradição do Baixo Sul da Bahia

Patrimônio cultural de Ituberá (BA) constrói narrativas e fortalece a cultura local com seus 23 bonecos

Luan Sacramento

O Candomblé Elétrico é uma instalação artística mecânica que representa a celebração da religião de matriz africana, sendo uma das riquezas culturais do município de Ituberá, na região do Baixo Sul da Bahia. Em 2024, a obra completará 75 anos de existência. Criada em 1950 pelo artista plástico autodidata Braz Souza, ela é avaliada pela gestão local como apta a se tornar patrimônio cultural material do município.

Mais do que um objeto artístico, o Candomblé Elétrico é considerado um ícone da cultura ituberaense, baiana e brasileira, e se destaca não apenas pela importância artística, mas também pela relevância como bem cultural único no mundo e que se mantém em funcionamento até hoje. 

A obra combina elementos de expressão artística com as tradições das religiões afro-brasileiras, refletindo a história e a diversidade cultural do Brasil. Com 23 bonecos dançantes minuciosamente caracterizados com vestes típicas do candomblé, a obra é um espetáculo de detalhes: as vestimentas, os acessórios vibrantes e as expressões dos bonecos capturam a essência dos rituais.

Esse trabalho delicado ganha vida por meio de uma engenhoca feita de motores, correias e roldanas, que cria a magia da dança sincronizada. Além de ser uma peça artística, o Candomblé Elétrico também é uma forma educativa de ensinar sobre o candomblé e as religiões de matriz africana.  

As engenhocas movimentam os bonecos. Foto: Acervo pessoal

Legado de Braz Souza

Para o gestor cultural, professor e atual tutor da obra, Fawaz Abdel, o Candomblé Elétrico é uma referência artística e um símbolo da memória ituberaense. “É uma peça artística elaborada por Braz Souza, que, no seu visual cênico, representa uma festa de terreiro de candomblé. Braz conseguiu conceber isso com harmonia em diversos aspectos – o fundo, os bonecos, as vestimentas. O Candomblé Elétrico representa para nós a memória e o legado artístico de Braz e valoriza um patrimônio cultural relevante para o nosso município”, explicou. 

Braz Souza criou o ícone da cultura ituberaense em 1950. Foto: Acervo Candomblé Elétrico

O envolvimento de Fawaz com o Candomblé Elétrico começou na infância quando teve a oportunidade de assistir às performances de Braz Souza. “Com sete ou oito anos, eu vi o Candomblé em ação. Aquilo me marcou profundamente”, recordou. Anos mais tarde, ao tornar-se diretor de cultura do município de Ituberá, Fawaz buscou redescobrir e dedicou-se a revitalizar a obra.

O equipamento está sob a tutela do gestor cultural, professor de artes e teatro, ator e diretor, Fawaz Abdel. Foto: Acervo pessoal

Para o gestor, o bem cultural não é apenas uma relíquia do passado, mas uma ponte que liga as tradições afro-brasileiras ao presente, ao mesmo tempo em que dialoga com as novas gerações. O gestor cultural descreve a obra não apenas como uma peça artística, mas como um patrimônio cultural que deve ser valorizado e preservado. 

“O Candomblé Elétrico vai além da estética é uma expressão da identidade de nossa comunidade”, enfatizou Fawaz Abdel.

Desde a criação, a obra já foi apresentada em diversas cidades e capitais do Brasil. Um de seus momentos mais marcantes ocorreu em 1953, quando foi exibida na estação ferroviária Central do Brasil, no Rio de Janeiro, com a presença do então presidente Getúlio Vargas. No entanto, a trajetória da obra não foi fácil. Criada em um período de extrema intolerância religiosa, quando terreiros de candomblé eram perseguidos, o Candomblé Elétrico enfrentou resistência, mas sobreviveu e se consolidou como atração cultural. Desde 2001, é um dos destaques do Universo Paralello, maior festival de arte e cultura alternativa da América Latina.

Função educativa da obra

Para quem presencia a apresentação, a obra toca emocionalmente e propõe uma reflexão cultural e social. A terapeuta Naju Mencuttini, que conheceu o Candomblé Elétrico durante a 15ª edição do Universo Paralello, relata a experiência com entusiasmo: “Ver a gira acontecendo com os bonequinhos, da forma que representam, tudo acontecendo, eu achei extremamente genial”.

Com forte ligação com a Umbanda desde a infância, Naju destacou o valor educativo e representativo da instalação. “A peça desperta as pessoas para enxergarem a beleza de um ambiente ritualístico que manifesta o contato com o corpo e o espiritual, como acontece nas religiões de matriz africana”, afirmou.  

A terapeuta Naju Mencuttini é uma entusiasta do Candomblé Elétrico. Foto: Acervo pessoal.

Além disso, Naju compara a obra com o presépio natalino, enfatizando o quanto é raro encontrar representações artísticas de expressões religiosas afro-brasileiras. “Estamos acostumados a ver presépios no Natal, mas dificilmente vemos algo tão bem elaborado sobre religiões de matriz africana como o Candomblé Elétrico. Isso é único”, apontou.

Mais do que uma expressão artística, para ela, o trabalho de Braz Souza celebra tradições afro-brasileiras em formatos acessíveis e inovadores, contribuindo para a valorização de um legado frequentemente negligenciado.  

A função educativa do Candomblé Elétrico vai além de despertar curiosidade. Para o historiador e superintendente de cultura de Ituberá, Egnaldo Rocha, a obra contribui com a desconstrução de preconceitos, posicionando-a como um instrumento fundamental de transformação cultural.  

Para o historiador e superintendente de cultura de Ituberá, Egnaldo Rocha, a obra contribui com a desconstrução de preconceitos. Foto: Acervo pessoal.

O superintendente de Cultura abordou a relevância da obra para o município. “O Candomblé Elétrico é um patrimônio cultural material do nosso município e que por si só já guarda uma singularidade ou importância para nós ituberaenses.”

Ele explica que a obra, criada por Braz Souza, circulou pelo Brasil durante anos, levando uma representação do candomblé para outros lugares e, com isso, promovendo o reconhecimento e a valorização dessas tradições. “Isso é algo de extrema importância para nós e para a população afro-brasileira como um todo”, pontuou. 

Conexão religiosa e contribuição cultural

O pai de santo Carlos Amorim, líder do Terreiro Gira de Umbanda em Ituberá, reforça o profundo respeito do “Candomblé elétrico” à cultura afro-brasileira. “É como se você estivesse dentro de um terreiro de candomblé. Os bonecos foram criados com muita precisão e capturam os elementos essenciais do culto, como instrumentos, vestimentas e toques”, pontuou. 

Para ele, a obra tem um impacto profundo, especialmente em ambientes escolares, onde pode desmistificar o candomblé e aproximar as crianças da riqueza dessa tradição. “Ensinar sobre os papéis de um ogan, uma iyá ou um babalorixá é fundamental.

O pai de santo Carlos Amorim destacou que o patrimônio cultural tem o papel de desmistificar o candomblé e aproximar as crianças da riqueza dessa tradição. Foto: Reprodução

O “Candomblé elétrico” quebra a ideia de que só uma ou duas religiões são importantes”, argumentou, destacando o papel das tradições afro-brasileiras na formação cultural brasileira. Carlos também faz um apelo por maior apoio governamental: “Precisamos de incentivos para preservar e ampliar o alcance desse patrimônio cultural. É uma representação viva de um terreiro que merece ser valorizada”.  

Segundo Carlos Amorim, o Candomblé Elétrico transcende a arte, sendo um verdadeiro símbolo de resistência e representatividade da cultura afro-brasileira. 

“Ele já é algo cultural e precisa ser mais visto, mais valorizado. É necessário enxergá-lo como parte viva do nosso axé, afinal é uma representação real dos terreiros, pronta para ser estudada, visitada e compreendida”, concluiu o babalorixá Carlos Amorim.

Luta pela tradição

Embora a obra seja um marco cultural, sua preservação enfrenta desafios. Fawaz Abdel, atual tutor da instalação, alerta para a falta de apoio contínuo. “Por ser um patrimônio cultural, é necessário ter recursos para mantê-lo seguro e acessível. Um lugar onde as pessoas possam visitar já seria uma forma de protegê-lo. Infelizmente, ainda falta esse investimento”, lamentou.  

O “Candomblé elétrico” transcende o espetáculo; ele é um elo vital com a história afro-brasileira e uma celebração da identidade, diversidade e resistência cultural. Ao completar 75 anos, a obra não apenas homenageia o passado, mas também convida as novas gerações a refletirem sobre a riqueza da tapeçaria cultural brasileira. Respeitar e valorizar suas múltiplas identidades é fundamental para garantir que esse legado continue vivo.