Entre a Caatinga e a Sétima Arte: Milagres como cenário do cinema brasileiro

Na terra de belezas naturais e riquezas culturais, grandes produções cinematográficas celebram a identidade do sertão

Maiana Cruz 

Milagres se tornou cenário para filmes premiados. Foto: Paulo Menezes

Entre a mata e a caatinga, emoldurada por cinco imponentes montanhas que atraem olhares curiosos e admirados, Milagres-BA tornou-se um cenário irresistível para filmes premiados como Os Fuzis, de Ruy Guerra, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha, Central do Brasil, de Walter Salles, entre outras produções consagradas.

Localizada a 234 km da capital baiana e a 124 km da princesa do sertão, Feira de Santana, a pequena cidade do Vale do Jiquiriçá acolheu enredos, luzes e câmeras, transformando suas ruas e paisagens no cenário ideal para as grandes telas. Um palco natural, a cidade vibra com a satisfação de seus moradores, que já viveram o cinema como figurantes e tem a possibilidade de reviver essas memórias por meio do projeto Cine Milagres, que realiza a exposição de filmes gravados no município em praça pública com recursos da Lei Paullo Gustavo (nº 195/2022).

Atravessada pela BR 116, Milagres, que tem pouco mais de 11 mil habitantes, é de fácil acesso. O turismo religioso é o principal atrativo da cidade, que recebe romeiros em procissões ao longo do ano. A vegetação traz o contraste entre o verde e o seco, é inspirador, uma beleza crua que atraiu a atenção de cineastas, que encontraram nas montanhas e na acolhida dos moradores a essência de um Brasil profundo.

A cidade fica a 234 km da capital baiana e a 124 km da princesa do sertão, Feira de Santana. Foto: Direito de imagem Grupo Beel

Cine Milagres

Para o autor do projeto Cine Milagres, Danilo Araújo dos Santos, também um “fazedor de cultura”, técnico de som, figurante, sua participação foi uma oportunidade de realização. “A lei Paulo Gustavo me ajudou a realizar um sonho, eu sempre tive essa vontade de fazer cinema e quando vi essa oportunidade eu entrei de cabeça, porque levar cinema a quem não tem tanto acesso é muito bom. É maravilhoso você poder viver em um lugar e ver aquele lugar passando na tela, todas as lembranças, seja de uma paisagem natural, de um casarão ou dos morros”, relatou.

Lei Paulo Gustavo (foto divulgação do ator à direita) ajudou a realizar o Projeto Cine Milagres

O projeto, que recebeu o incentivo R$ 6.560,29, apresenta quatro filmes gravados no município: Central do Brasil, Sertânia, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro e Cinderela Baiana, as produções contam com a participação dos munícipes na figuração e nos bastidores. A mostra é uma oportunidade evidenciar a potência da cidade e valorizar seus moradores. A exibição é aberta ao público e é realizada no salão da Praça da Juventude, no centro da cidade.

O ator e artesão Antônio Bispo dos Santos, popularmente conhecido como Tom Milagres, fez figuração em cena com Fernanda Montenegro, no filme Central do Brasil. Tom diz que ficou muito feliz quando soube das cenas que seriam gravadas na cidade, na época o ator participava ativamente de um grupo de teatro no município, com a gravação teve a oportunidade de conhecer grandes nomes do cinema.

Cena do filme Central do Brasil com a atriz Fernanda Montenegro. Foto: Divulgação

“Meu papel foi de figurante mesmo, só de ver o rasgo do vestido de Fernanda Montenegro. Eu fiquei por dois dias consecutivos sentado numa mesa, proseando com Fernanda Montenegro, com Vinícius, com Walter Salles. Teve um momento que ficou eu e ela sozinhos na mesa, falando do teatro, o que eu já tinha feito pelo teatro, essa coisa toda, e ela falando tudo o que ela fez, aquela coisa muito gostosa “, relembrou.

Tom Milagres contou com orgulho do momento em que a consagrada atriz, Fernanda Montenegro o apresentou como ator: “No segundo dia foi muito interessante, que estava eu, ela (Fernanda), Vinícius e Walter Salles. Aí Walter saiu para ir ver alguma coisa e chegou o Tom Bastos e ela me apresentou como ator. ‘Esse aqui é o ator de Milagres, que viu o rasgo do meu vestido e é um pintor, ele é teatrólogo’, me senti lá no céu, né? Aquele momento foi brilhante na minha vida”. 

O artesão contou que ganhou dinheiro com as pinturas que aparecem em cena. “Eu ganhei um bom dinheiro, sabe? E ainda não ganhei mais, porque eu fiquei com medo, eles me chamaram para ir ao Pernambuco, lá onde gravou a última parte do filme, não fui, eu ainda fui para Itatim com eles, ainda andei muito por aí.”

Cultura

Mais do que os cenários para as telonas, Milagres se transforma em um palco onde arte, cultura e economia se encontram, promovendo um ciclo de valorização comunitária e desenvolvimento local.

O diretor de Cultura de Milagres, Luciano Jandre, destaca a importância da cidade como cenário cinematográfico. Para ele, a exposição gerada por essas produções contribuiu significativamente para a valorização da cultura local. “As produções cinematográficas trazem nossa história e tradições para um público muito mais amplo, tanto no Brasil quanto fora dele. Isso não só fortalece a identidade local como também projeta Milagres como um lugar cheio de vida e significado para o mundo”, afirmou.

Por que Milagres encanta os Cineastas

Os elementos que tornam Milagres irresistíveis para o cinema começam com sua arquitetura histórica. O município preserva construções coloniais e casarões que parecem ter parado no tempo, compondo propostas ideais para filmes de época. Luciano Jandre exemplifica: “O Casarão das Quixabas, onde foi filmado o clássico Os Fuzis, de Ruy Guerra, em 1964, é um marco dessa conexão entre Milagres e o cinema. Nossa arquitetura conta histórias e oferece paisagens que poucos lugares podem proporcionar”.

Além da arquitetura, a cultura milagrense é um atrativo à parte. Festas populares, samba de roda, rezas e romarias acrescentam profundidade às narrativas cinematográficas, enquanto as paisagens naturais complementam o cenário. “Nossos inselbergs (grandes rochas ou montanhas isoladas que emergem bruscamente da paisagem circundante, formando um contraste marcante com o entorno), que parecem tocar o céu, e o horizonte radiante fazem de Milagres um lugar cinematograficamente poético. E não podemos esquecer da hospitalidade do nosso povo, que cria uma atmosfera acolhedora para as equipes de filmagem”, destacou.

Os filmes gravados em Milagres geraram um impacto profundo na forma como a comunidade percebe sua própria cultura e identidade. Luciano Jandre observa que, ao ver suas tradições e paisagens nas telas, os moradores se reconectam com sua história de maneira significativa.

“Há uma revalorização dos costumes e tradições. As pessoas passam a enxergar a beleza de suas raízes e sentem orgulho de pertencer a este lugar”, explicou Jandre.

Ele destaca ainda o papel do cinema na preservação de celebrações tradicionais, como a Festa dos Vaqueiros e as romarias. “Esses eventos sempre foram importantes para nós, mas ganharam ainda mais relevância e reconhecimento por conta da visibilidade gerada pelos filmes. Hoje, são atrações que reforçam nossa identidade cultural e atraem turistas de várias partes do Brasil”, pontuou.

Cinema como motor econômico

O impacto econômico das produções cinematográficas em Milagres é outro aspecto importante para a cidade. Desde a contratação de figurantes até o uso de serviços locais, como hospedagem e alimentação, as operações movimentam a economia do município. 

“As produções costumam contratar moradores para diversas funções, gerando empregos temporários e, em alguns casos, até permanentes. Além disso, a chegada das equipes aumenta a demanda por serviços locais, beneficiando pequenos negócios”, explicou Jandre.

O comércio local se transforma durante a gravação. Restaurantes, lojas e mercados experimentam um aumento significativo no movimento. “É um ciclo de geração de renda que fortalece a economia local e cria oportunidades para a comunidade. É bonito ver como o cinema não só enriquece as telas, mas também transforma vidas aqui”, acrescentou.

A visibilidade fornecida pelas produções cinematográficas têm iniciativas inspiradoras para transformar Milagres em um destino turístico consolidado. Luciano menciona o Plano Viva Turismo Bahia como uma estratégia fundamental para destacar as riquezas culturais e naturais do município. “Estamos investindo em nossa identidade, promovendo festas populares, nossa gastronomia e as belezas naturais. A ideia é fazer com que a visibilidade gerada pelos filmes se converta em um fluxo constante de turistas”, explicou.

A expectativa é que, ao explorar a conexão entre cinema e turismo, Milagres se torne um destino desejado por visitantes que buscam não apenas paisagens deslumbrantes, mas também uma experiência imersiva na cultura local. Luciano Jandre acredita que o cinema é uma das chaves para criar essa ponte. “Os filmes despertam a curiosidade das pessoas. Eles querem conhecer os lugares que viram na tela, vivenciar as tradições que foram retratadas. Isso fortalece nossa economia e garante a preservação do que temos de mais importantes: nossa cultura”, afirmou.

Preservar para inspirar

Os benefícios trazidos pelo cinema em Milagres vão além do reconhecimento imediato. Jandre destaca que a exposição das tradições e paisagens no cinema estimula esforços para preservar o patrimônio histórico e cultural da cidade. “A visibilidade atrai recursos e apoio para a conservação de nossos casarões, e festas tradicionais. Isso nos permite não apenas manter viva nossa história, mas também compartilhá-la com o mundo”, disse.

Ele acredita que a continuidade desse ciclo virtuoso depende do equilíbrio entre desenvolvimento econômico e preservação cultural.

“Precisamos garantir que o progresso seja acompanhado do respeito às nossas tradições e ao nosso modo de vida. É isso que nos torna únicos e que faz de Milagres um lugar tão especial para o cinema e para quem vive aqui”, refletiu Jandre.

Milagres tem se consolidado como um símbolo de como a arte e a cultura podem transformar uma comunidade. Ao oferecer ao cinema cenários que combinam história, tradição e natureza, a cidade projeta sua identidade para o mundo enquanto fortalece suas próprias raízes.

“Somos uma cidade que carrega o passado com orgulho e olha para o futuro com esperança. O cinema nos ajuda a mostrar que nossa cultura é valiosa e que nossas histórias merecem ser contadas. Esse é o legado que queremos deixar: um lugar onde o cinema e a cultura caminham juntas para inspirar as próximas gerações”, concluiu Luciano Jandre.

Se as paisagens de Milagres encantam o olhar, o seu povo dá brilho às histórias contadas no cinema. Jandre ressalta que, além de figurantes, muitos moradores participam das produções contribuindo com seus talentos e tradições. Essa interação não apenas fortalece a identidade cultural local, mas também eterniza as vozes e os saberes milagrenses nas telonas.

A rezadeira

Entre essas vozes está a de Luzia Neres Gomes de Santana, conhecida como Dona Luzia, uma rezadeira de 99 anos, cuja fé e canto tradicional já encantaram cineastas e espectadores. Ela não apenas participou de algumas produções como também carrega, em suas rezas e histórias, uma Milagres que transcende o tempo.

Dona Luzia é uma rezadeira de 99 anos, que já participou de algumas produções cinematográficas. Foto: Maiana Cruz

Dona Luzia relembra com emoção sua estreia no cinema, quando participou do aclamado Central do Brasil. “O primeiro filme foi com a Fernanda Montenegro e eu cantando o bendito de mãe de Deus das Candeias, ela (Fernanda) procurou aqui em Milagres e não achou, aí informaram a ela de mim…Na gravação eu saí cantando do morro da Ponta Aguda (Itatim-BA) até a ponte do Paraguaçu”, relembrou.

Saiba mais

A Lei Complementar nº 195/2022, também conhecida como Lei Paulo Gustavo, foi criada para fomentar a cultura no Brasil, destinando mais de R$3,8 bilhões ao setor cultural, com foco especial na produção audiovisual. Inspirada na memória do ator Paulo Gustavo, a lei busca minimizar os impactos da pandemia na área cultural, oferecendo suporte a fazedores de cultura, a artistas, produtores e trabalhadores do setor. Em 2023, editais lançados em diversos estados e municípios contemplaram projetos de cinema, documentários, séries e outras produções audiovisuais. A iniciativa se destacou pela descentralização dos recursos, promovendo a democratização do acesso à cultura e fortalecendo as cadeias produtivas locais, especialmente em regiões historicamente menos favorecidas.