No mundo geek as figuras femininas são objetificadas, pois os traços vêm da cultura patriarcal e preconceituosa
Henrique Pimenta
*Publicado em dezembro de 2022
A recente série “She-Hulk: Attorney at Law”, disponibilizada no streamer Disney+, teve seu último episódio lançado no dia 12 de outubro deste ano. Apesar de ser bem recebida pela crítica especializada, o seriado foi detonado nas redes sociais e recebeu a pior avaliação da audiência em uma produção Marvel Studios. A verdade é que o seriado sofre ataques que nada tem a ver com sua qualidade desde quando foi anunciada no ano de 2019, escancarando uma dura verdade sobre os amantes da cultura pop e o seu universo geek: a existência de uma parcela considerável do público que enxerga com maus olhos sempre que uma mulher assume o protagonismo, seja na ficção ou no mundo real.
Com Jessica Gao a frente do projeto, a série não abriu mão de ter uma visão crítica sobre a representação do corpo feminino no universo geek, não só das produções audiovisuais, como também nas histórias em quadrinhos (HQs) e jogos; um lugar que ainda é bastante tóxico para as mulheres.
Usando o humor sarcástico e ácido como sua principal arma, a personagem She-Hulk, interpretada por Tatiana Maslany, precisa enfrentar não grandes mentes criminosas ou seres cósmicos, mas sim um grupo de homens misóginos autodenominados Intelligencia. Um mal muito mais real e sinistro, que assedia constantemente She-Hulk por não aceitá-la como uma super heroína e estar num papel de destaque.
Os argumentos preconceituosos do grupo Intelligencia são retirados dos mais diversos casos de misóginas que as mulheres sofrem rotineiramente na vida real, inclusive ditos sobre a própria série quando foi anunciada, como foi o caso de um dos comentários no qual dizia: “Então temos um movimento #MeToo e agora todos os heróis masculinos se foram?”


(fonte: https://twitter.com/shehuIkupdates. acessado dia 10/11/2022)
As ações do grupo Intelligencia são remanescentes do sexismo no mundo real e que sempre esteve presente no universo geek. O comportamento tóxico do público só reflete a realidade de uma indústria majoritariamente masculina e que sempre representou as mulheres de forma objetificada. O corpo feminino é alvo constante de agressões e imposições ao longo da história da cultura pop, onde as mulheres são representadas muitas vezes apenas com o objetivo de satisfazer o prazer masculino e suas fantasias eróticas.
Mas o que é objetificação?
“A noção de objetificação sexual vem de tratar ou representar uma pessoa enquanto um objeto, não enquanto um sujeito. Existe essa separação, esse dualismo. O corpo objeto é um corpo que não é humanizado. Então a gente trata essa pessoa enquanto partes desse corpo, ou seja, o corpo dessa mulher que está objetificado sexualmente é dividido em partes: bunda, peito, barriga e etc,” diz a jornalista, pesquisadora e docente Naiara Moura, mestre em Comunicação pela UFRB, doutoranda em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e membro do grupo de pesquisa Corpo e Cultura.
Naiara Moura, mestra, doutoranda e pesquisadora do grupo de pesquisa Corpo e Cultura
De acordo com Naiara Moura, a The American Psychological Association (APA) sugere quatro componentes, nos quais a presença de um só deles já é um forte indicativo de objetificação sexual. Esses componentes são:
a) o único determinante do valor de uma pessoa está em seu apelo ou comportamento sexual, excluindo-se outras características; b) o apelo sexual é baseado apenas na atratividade sexual, normalmente definida de maneira restrita; c) pessoas são objetificadas sexualmente, ou seja, tratadas como objetos a serem consumidos e não como sujeitos capazes de tomar decisões e agir de maneira independente; d) a sexualidade é imposta de maneira inapropriada sobre uma pessoa.
Por mais que heroínas e vilãs sejam tão poderosas e capazes de salvarem ou então destruírem o mundo, elas não escapam do sexismo e de serem retratadas como objetos de desejo sedutores. Frequentemente as personagens femininas no universo geek são retratadas como figuras subordinadas ao homem, aparecendo em segundo plano e perpetuando estereótipos de papéis de gênero.
Quando não eram criadas para serem cuidadoras ou para dar apoio emocional ao personagem masculino, elas são apresentadas com conotações sexistas de acordo com suas habilidades, por isso não é difícil encontrar personagens com poderes de manipulação mental e sedução, como é o caso da vilã Rainha Branca e da Poison Ivy e suas porções do amor. Tudo isso é claro vem junto com uniformes que mais se parecem roupas eróticas.
X-Men Origens: Emma Frost, 26 de maio de 2010. Fonte: https://66.media.tumblr.com/
Infelizmente o que não falta são exemplos de como os corpos femininos são apresentados nas produções do universo geek. Ainda é comum nas HQs, por exemplo, as personagens estarem seminuas e com proporções corporais nada naturais, reforçando um padrão estético inalcançável.
Como se não fosse o bastante, essas personagens são desenhadas em posições eróticas que desafiam as leis da física. Uma das poses mais conhecidas dos quadrinhos é a “broke back”, uma pose anatomicamente incorreta que é usada frequentemente para mostrar os peitos e bunda das personagens femininas ao mesmo tempo, a fim de satisfazer as fantasias dos “leitores”.
Fonte: https://imgur.com/a/1snFc) (Fonte:https://www.thegeektwins.com
A pesquisadora Naiara Moura ressalta que é importante entender que o universo geek está dentro de um contexto cultural mais amplo e que acaba por replicar essas práticas machistas.
“Entender o contexto […] e entender as violências, a objetificação e a representação feminina nesse contexto específico é também entender o macro, é entender uma sociedade que é machista, misógina, gordofóbica e racista”, avaliou Naiara Moura.
É importante se questionar para qual público essas produções do universo geek – audiovisuais, HQs e games – estão sendo produzidas. Porém, ainda mais importante é entender quem está produzindo essas obras. “Quando entendemos que existe ainda uma linha de produção, usando ainda a lógica da indústria cultural e que é formada majoritariamente por homens, e acredito que esteja em processo de mudança, consequentemente essa representação e esses corpos femininos vão vir atendendo ao que essas pessoas entendem como satisfatório, como interessante e como esteticamente atraente para ser assistido e para ser consumido”, disse Naiara Moura.
O olhar masculino
Já na década de 1970, o movimento feminista discutia a presença do corpo feminino nas produções culturais, onde as mulheres eram representadas majoritariamente como objetos de desejo e posse , e quais eram as causas para isso acontecer. Em 1975, num artigo denominado “Visual Pleasure and Narrative Cinema”, a crítica cinematográfica Laura Mulvey desenvolve o termo Male Gaze, onde argumenta que os filmes hollywoodianos são produzidos atendendo a escopofilia masculina, que é quando se tem prazer ao olhar ou assistir algo, e principalmente que esse olhar é produzido pelo homem, que em sua maioria é hetero e branco.
O conceito, que traduzido significa “Olhar Maculino”, hoje é amplamente usado em outras áreas, não se limitando somente ao cinema, buscando combater a sexualização e espetacularização das mulheres para satisfazer o produtor e espectador masculino. O male gaze pode ser visto quando a câmera foca em enquadramentos que valorizam as curvas do corpo feminino e que invadem sua privacidade. Negando assim a particularidade das mulheres, relegando-as apenas ao status de objeto.
Pensando no contexto das HQs e dos games, o conceito aparece na forma como as personagens femininas são pensadas e desenhadas, que buscam atender a fetichização e exploração dos corpos femininos. Dessa forma as mulheres são apresentadas como os homens gostariam de vê-las, não sendo nada além de uma idealização que passa longe da realidade.
Evolução da personagem Ivy Valentine nos títulos da franquia do game SoulCalibur. Fonte:https://www.eventhubs.com, acessado em 21/11/2022
O male gaze muitas vezes é justificado erroneamente com o argumento que o universo geek é um espaço somente do público masculino, porém de acordo com a Pesquisa Game Brasil, realizada em 2021, as mulheres representam 51,5% do público consumidor de jogos no país. “O público predominante masculino desses espaços é uma distorção criada por décadas de produtos culturais misóginos e sem representatividade e do direcionamento da publicidade dos mesmos, e não fruto do desinteresse feminino por cultura pop. Pelo contrário, mesmo assim estamos presentes nesses espaços”, defende Beatriz Blanco, jornalista especializada em jogos digitais e cultura digital, mestra em Artes pela Universidade Estadual de Campinas, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e integrante do CULTPOP – Laboratório de Pesquisa em Cultura Pop, Comunicação e Tecnologias.
Dessa forma é importante entender que o problema está muito além das representações sexualizadas e objetivadas do corpo femino por si só, mas de como essas representações reproduzem e perpetuam as relações de poder e opressão, como ressalta a pesquisadora Beatriz Blanco: “O problema é mais sobre a estrutura do mercado de produção cultural, dominado por homens cis, brancos e heteros, do que simplesmente do decote das personagens”.
Algumas mudanças já podem ser vistas na forma como o corpo feminino é representado no universo geek, e muitas obras já estão trazendo o protagonismo feminino, como é o caso dos filmes da Mulher Maravilha e da Capitã Marvel. Mas é fundamental repensar as políticas de produção, como a contratação de funcionários diversos em posições de decisão dentro das indústrias culturais, para mudar esse olhar que ainda é majoritariamente masculino.
“É muito fácil eliminar uma saia curta e um decote. Mas isso significa que estamos de fato criando espaços inclusivos?” questiona a pesquisadora Beatriz Blanco, e continua: “As representações positivas precisam ir além da aparência das personagens, é preciso falar de diversidade de experiências e expressões também”.
É o que aconteceu com a personagem Arlequina e as suas representações nas recentes produções audiovisuais da DC Comics. Em Esquadrão Suicida (2016), filme escrito, dirigido e produzido por homens, enquanto a personagem ajuda a equipe de anti-heróis, seu corpo é objetificado por um olhar masculino que assedia e invade a intimidade da personagem. Numa das cenas a personagem troca de roupa na frente de dezenas de homens que a observam fixamente, a câmera então filma seu corpo de baixo a cima ao mesmo tempo que a personagem performa movimentos sensuais.
Mais tarde, em 2020, é lançado o filme “Aves de Rapina: Arlequina e Sua Emancipação Fantabulosa”, onde a personagem tem papel de destaque. Agora tendo roteiro e direção de mulheres e sendo produzida pela atriz que interpreta a personagem, Margot Robbie, Arlequina ganha novos olhares femininos. Assim, deixa de ser objetificada para tomar as rédeas da própria vida, se emancipando como sugere o próprio título, com mudanças que vão além do seu figurino, trazendo empoderamento e uma história tridimensional.
Diferença do figurino de Arlequina nos posters dos filmes Esquadrão suicida e Aves de Rapina. Fonte: http://farofageek.com.br/filmes, acessado dia 22/11/2022
“Eliminar qualquer sexualidade de figuras femininas sem qualquer crítica mais aprofundada não é também uma forma de reproduzir um binarismo conservador entre mulher vulgar e mulher recatada? Isso são complexidades que só serão resolvidas ao incluir mulheres diversas no processo de criação desses produtos culturais”, disse a pesquisadora Beatriz Blanco.
É visível a necessidade da indústria cultural, na qual o universo geek está inserido, trazer mudanças de paradigmas que vão além do figurino e poses. A transformação de como o corpo fenino é representado nessas obras, só é possível se tivermos novos e diversificados olhares. Dando mais vozes ao público feminino que consomem essas obras, que como vimos, apesar de serem maioria, muitas vezes são descredibilizadas e atacadas por uma comunidade que ainda é controlada por uma visão machista e misógina.
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