Filarmônicas centenárias são essência da música no Recôncavo

Organizações do território ajudam a preservar cultura negra do Estado ao realizarem apresentações e formação musical

Luana Miranda

Mais de 50 jovens, em sua maioria negros, marcharam pelas ruas de São Félix em plena manhã do 7 de setembro, em 2024. Eles vestiam roupas cujos modelos referenciam o fardamento oficial das organizações militares. Não, eles não desfilaram em comemoração a Independência do Brasil, como você deve ter imaginado. Na verdade, na Bahia, essa data é comemorada no dia 2 de julho, tendo os festejos preliminares sendo realizados no Recôncavo a partir de 25 de junho. Esse jovens marcharam em comemoração aos 107 anos da Filarmônica União Sanfelixta.

No lugar de armas, empunhavam os instrumentos musicais percussivos e de sopro. Os acordes das músicas tradicionais das filarmônicas, em boa parte do caminho, foram substituídos por músicas populares. Os moradores já acostumados com o vai e vem sonorizado colocavam as cabeças para fora das casas e saudavam amigos, filhos e netos. A rotina centenária se repete em diferentes datas todos os anos, não só em São Félix, mas, também, na margem direita do Rio Paraguaçu, em Cachoeira, a 110 Km da capital.

Desfile da União Sanfelixta realizado em 7 de setembro de 2024 em comemoração aos 107 anos da Filarmônica. Captação: Luana Miranda

A União Sanfelixta é a filarmônica mais jovem dentre as centenárias dos municípios. Junto a ela encontram-se a Musical Minerva Cachoeirana, fundada em 10 de fevereiro de 1878, e a Lyra Ceciliana de Cachoeira, fundada em 1870 — sendo considerada pelo Instituto do Patrimônio Artístico Cultural (IPAC) como a segunda filarmônica mais antiga da Bahia.

O curioso dessa história toda é que o Recôncavo se tornou reconhecido internacionalmente pelo samba de roda e pela ligação ancestral com a cultura dos povos africanos. Mas é quase uma missão impossível encontrar algum músico na região, seja ele sambador, ou de qualquer outra origem, que não tenha ligação direta com uma dessas três filarmônicas citadas. Elas são a base estrutural da música do Recôncavo e suas influências modificaram as estruturas sociais da região.

Influências afro-índigenas e europeias

O Recôncavo é reconhecido nacionalmente como um território repleto de influências afro-indígenas e europeias. Para além disso, a história da região é marcada pelo desenvolvimento econômico da Bahia no período colonial. Era através das águas do rio Paraguaçú que as mercadorias do interior chegavam à capital do estado, e, até então, capital do Brasil. Esse fator é essencial para entender a grande concentração de filarmônicas no território. Com a transferência da Coroa Portuguesa para as terras brasileiras vieram junto tradições e ritos sociais, no caso, as bandas militares. Elas eram responsáveis por entreter o público nos eventos da “sociedade”.

Assim como a Bahia, o Recôncavo representava um espaço político e economicamente importante em escala nacional. Surgiu a necessidade que mais bandas musicais existissem para dar conta dos muitos eventos das classes abastadas. Entretanto, um fenômeno ocorreu. As bandas da região, em sua maioria, eram compostas por homens negros escravizados e alforriados: engraxates, barbeiros, construtores, entre outros. Desde então, a tradição se mantém entre a população negra do território.

Para a diretora da Escola de Música da Minerva Cachoeirana Alcides Santos, Denise Ferreira Marques,uma mulher negra, a negritude atrelada às filarmônicas da região ocorre devido às bandas de fazendas. “Essas bandas eram formadas pelos escravos. Eles iam para a lida e quando retornavam ainda tinha essa atividade. A música era aprendida de ouvido, experimentação mesmo, passando um para o outro. Com a abolição da escravatura, os escravos foram forros, foram libertos, e aí criou-se a banda de barbeiros. Essa banda de barbeiros servia a esses senhores e às festividades da igreja, que já era de costume naquela época”, comentou.

A história de Denise com a música, segue o mesmo fluxo de muitos outros moradores de Cachoeira que há gerações integram as filarmônicas da região. “Aos meus 15 anos, eu resolvi entrar na Minerva. Meu avô, Clarício Marques, era mestre ali da escolinha. Eu fui pegando amor, ouvindo as histórias que ele contava. Com um mês, eu peguei instrumento. Com dois meses, eu estava pronta pra ir pra banda. Acabei subindo com seis meses. Já estou na filarmônica há 26 anos”, relatou a musicista.

Quadro da Administração da Escola de Música da Minerva, Alcides Silva. Foto: Luana Miranda

Fundada por Eduardo Mendes Franco, a Minerva Cachoeirana é um exemplo de resistência e preservação cultural. Seu repertório inclui música erudita e popular, conectando a tradição à modernidade. A filarmônica mantém uma forte presença em festividades religiosas e suas origens remontam ao início dos festejos de Nossa Senhora D’Ajuda, que até hoje representam a principal contribuição da Minerva para a cultura popular da cidade. Atualmente, o quadro estudantil da escola é composto por 140 alunos, matriculados gratuitamente.           

Manutenção

A manutenção financeira da instituição é feita em parceria com o município de Cachoeira, que possui um convênio com a organização para custear os serviços musicais prestados à cidade em festejos diversos. Os dados mais recentes do Portal da Transparência municipal informam a destinação de R$50 mil à filarmônica em 2021.

Registros da Minerva Cachoeirana no desfile cívico do dia 25 de Junho de 2024. Foto: Divulgação Minerva

A Minerva possui prédios coloniais conservados no centro histórico. Os imóveis, além de abrigarem os espaços de estudo e ensaio da banda, também são alugados gerando renda mensal para a manutenção da escola e compra dos instrumentos musicais fornecidos gratuitamente aos alunos.

O mesmo sistema de manutenção financeira acontece com a Lyra Ceciliana. O Portal da Transparência municipal mostra o repasse de R$40 mil realizado em 2021. A organização também participa de editais públicos para captação de mais recursos. A filarmônica possui cerca de 40 alunos e dois professores que recebem ajuda de custo pelos serviços prestados. De acordo com o presidente da filarmônica, Orlando José da Fonseca Mascarenhas, a Lyra Ceciliana foi fundada por um negro abolicionista e era constituída por músicos negros alforriados sapateiros, alfaiates. “Foi a única filarmônica que ao saber da assinatura da abolição saiu pelas ruas de Cachoeira tocando, festejando a abolição.”

Fundada por Tranquilino Bastos, a Lyra Ceciliana tem uma longa história documentada. Sua criação está diretamente ligada à figura de Bastos, que foi músico, compositor, maestro e professor, dedicando a vida à música e à causa abolicionista​. Deixando um legado de mais de mil composições. Sua obra misturava influências europeias com ritmos afro-brasileiros, criando uma identidade musical única para a filarmônica.

Registros da Lyra Ceciliana no Recôncavo Afro Festival, no dia 21 de novembro de 2024. Foto: Akin Akil

“Somos a filarmônica que sempre foi ativa, nunca fechamos nesses 154 anos de existência, formando músicos pela nossa escola, alguns nas bandas militares e outras tocando em palcos pelo Brasil, continuando os compromissos em eventos, procissões, desfiles cívicos e formando jovens na arte da linguagem musical e universal que é a música”, declarou Orlando Mascarenhas.

Frutos

Um grande exemplo dos frutos gerados pelas filarmônicas do Recôncavo é Vinicius Freitas, de 44 anos, que hoje ocupa o cargo de maestro substituto da Sociedade Filarmônica União Sanfelixta. Ele começou na própria instituição tocando clarinete ainda na adolescência e depois migrou para o saxofone, instrumento que o levou a se formar como bacharel em música com foco em saxofones pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ele é popularmente conhecido como Maestro e conta que a Filarmônica tem em média 120 alunos, dois professores remunerados e cinco monitores voluntários.

As aulas preparatórias para as apresentações ocorrem na sede da filarmônica – um casarão recém reformado no centro de São Félix – e nos polos dos bairros 135, Caanga e Santo Antônio, na zona rural do município. As matrículas e os instrumentos são distribuídos de maneira gratuita, basta ter a autorização da família e a vontade de fazer música. Ao ser questionado como conseguiram manter financeiramente a instituição por tantos anos, o maestro afirma que só é possível por meio da remuneração proveniente de apresentações e da parceria firmada com a prefeitura.

No site de transparência fiscal do município é possível encontrar alguns valores pagos para a instituição proveniente de apresentações, a exemplo do desfile do 2 de julho deste ano. A apresentação rendeu ao grupo um repasse com valor global de R$ 3,7 mil. Alguns outros recursos são obtidos por meio de editais públicos nos quais a filarmônica é contemplada.

O motivo por trás da criação da Filarmônica União Sanfelixta é desconhecido. Sabe-se apenas que João Maurício do Nascimento, Carlos de Marcos, Hermilino Ferreira da Silva, Aristides Bruno de Magalhães, João Amaral, Plínio Carlos de Santana, Urbano Soares de Araújo, Artur J. Barbosa, Roberto Soares e Tarcilo Brito fundaram a instituição dando início ao legado centenário.          

               

Final do desfile da União Sanfelixta realizado em 7 de setembro de 2024 em comemoração aos 107 anos da Filarmônica. Foto: Luana Miranda

Cada vez mais músicos são preparados e seguem trilhando o legado ancestral. É o caso de Guilherme Augusto Simão de Brito, de 17 anos, saxofonista da Filarmônica Minerva Cachoeirana e, atualmente, músico e saxofonista dos Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia (Neojiba).

“Minha história começou na música muito novo, porque desde criança eu mostrava interesse em aprender um instrumento musical, um instrumento percussivo, principalmente. E por esse desejo insaciável, vamos dizer assim, eu pedi para meus pais para me colocarem na filarmônica, justamente por ver passando pela frente da minha casa tocando em procissões e etc”, disse Guilherme de Brito, que juntou uma conta de luz, a identidade e foi até a Minerva fazer a matrícula.

Ao pensar no futuro, o estudante compartilha: “eu pretendo ser músico profissional, quero continuar atuando na área porque é o que eu gosto, é o que eu amo e o que eu escolhi pra minha vida. Eu não tenho outra ideia do que fazer da vida a não ser ser músico”.

O exemplo de Guilherme de Brito mostra a força que as filarmônicas têm no território. Mesmo com o baixo financiamento público, a resistência popular garante que o legado seja passado por séculos ultrapassando as barreiras econômicas e raciais.