Do Brasil Colônia à tela da televisão, a ilha da Baía de Todos os Santos guarda histórias do país que não aparecem nos livros
João Vitor e Silva da França Dantas
Casarão histórico de Cajaíba – Foto: Paul R. Burley
Uma ilha marcada pela escravidão, pelo comércio do açúcar e por barões cruéis. Palco de lutas de resistência, lendas populares, grandes empreendimentos e que virou até cenário de novela. Um dos lugares preferidos do poeta Gregório de Matos e de atores da Rede Globo de televisão. A ilha de Cajaíba, em São Francisco do Conde, na Bahia, conta a história do Brasil. Em meio a tantos acontecimentos – em sua maioria conturbados – o que escutamos hoje é o silêncio. A mudança ao longo dos anos foi tanta que, segundo relatos, os atuais habitantes são as almas daqueles que habitaram o lugar durante o Brasil Colônia. Cajaíba é um paraíso que precisa ser redescoberto.
O início desta história se assemelha muito com o que já conhecemos do chamado “descobrimento” do Brasil, época da chegada de Pedro Álvares Cabral. A ilha de Cajaíba – de oito quilômetros de extensão e banhada pela Baía de Todos os Santos – chamou a atenção do terceiro governador-geral do país, Mem de Sá no século XVI. As terras já não eram desconhecidas, bandeirantes tinham tido contato e conheciam a região. Mas só foi com Mem de Sá que a ocupação aconteceu.
A chegada não foi simples, um reflexo daquilo que foi todo o governo do governador-geral, marcado pelo extermínio dos indígenas. Os Tupinambás foram os primeiros moradores da ilha, que inclusive leva o nome ‘Cajaíba’ por causa da língua do povo originário. Porém, a maioria dos habitantes originais foi dizimada durante o processo de domínio das terras. Mem de Sá se interessou pelo local e se tornou dono através de um ‘jeitinho brasileiro’.
De acordo com o historiador e vice-prefeito eleito de São Francisco do Conde, Marivaldo do Amaral, esse pode ter sido o primeiro caso registrado de corrupção no Brasil. “Esta ilha foi doada pelo governador-geral para um português que, à época, não vivia aqui no Brasil. Um ano depois, ele doou novamente para a família de Mem de Sá. Há quem diga, que foi uma manobra feita para a família do terceiro governador-geral da Bahia passar a ter propriedade sobre esta ilha”, explicou Marivaldo.
Mapa da Ilha de Cajaíba – Imagem: Google Maps
O lugar – antes preservado pelos indígenas – virou uma fonte de renda para o dono e para a região. O primeiro produto explorado nas terras até a escassez foi o Pau-Brasil. Bem depois, no século XVIII, já com um novo proprietário, foi a vez da produção do açúcar. O produto colocou a ilha no mapa de importância comercial na região. O sargento-mor José J. de Argolo era o responsável na época da instalação do engenho Cajaíba, um dos mais importantes da Bahia.
A produção do açúcar em Cajaíba tinha importância em nível nacional. A maior quantidade de engenhos de todo o Nordeste brasileiro estava concentrada no território de São Francisco do Conde. “Essa área no nosso município, se adequou perfeitamente para essa monocultura, porque tinha a terra adequada, o massapê, que se adequou perfeitamente. Então, Cajaíba se destaca como o engenho mais importante”, conta a turismóloga, educadora ambiental e responsável pelo Serviço de Atendimento ao Turista (SAT), Alice Maria Ferreira.
O elemento que marcou profundamente o espaço no qual está localizada a ilha foi a utilização de mão de obra escravizada. A história geral do Brasil nos conta as crueldades sofridas pelos escravizados, mas os relatos pioram quando verificamos casos específicos. O tratamento dado aos escravizados pelos barões que controlaram Cajaíba era desumano. O mais temido deles se chamava Alexandre Gomes de Argolo Ferrão, o barão de Cajaíba, nascido na ilha e sucessor aos 20 anos depois da morte de José J. de Argolo.
Ele mantinha o poder sobre a região e fazia o que quisesse com os escravizados. Qualquer desobediência era caso de castigo de morte. “Lá tem um fosso, ao lado do casarão, com um buraco profundo que chega até embaixo da água, com várias barras de lâminas. E os relatos que se tem é que essas pessoas escravizadas eram lançadas neste lugar e elas morriam ali. São muitos os relatos desse tipo de assassinato de pessoas que se negavam ao processo da escravidão”, afirmou Marivaldo.
Muitas coisas aconteceram durante o período de colonização na ilha, principalmente entre os séculos XVIII e XIX. Durante as lutas para a Independência do país, o proprietário de Cajaíba aderiu ao movimento e investiu no processo. Já no período regencial, um dos destaques da atuação do barão junto ao governo foi a participação para sufocar movimentos separatistas, a exemplo da Sabinada. Desde o Barão de Cajaíba, a ilha passou pelas mãos de muitas figuras. Algumas sonharam até demais.
Ilha de empreendimentos fracassados – Desde o fim da escravidão e o declínio da produção do açúcar, a ilha de Cajaíba perdeu a intensidade do movimento. A posse das terras foi passando de mão em mão e o local passou a ser habitado por uma reduzida população que vivia em pequenas casas, sustentadas pela colheita e pesca. Jorge Bahia nasceu na Ilha de Cajaíba e viveu os resquícios de uma história digna de livros escolares, “Aquela ilha, no meu tempo, as pessoas viviam muito bem ali, muito bem mesmo. Era muito bom. De 1956 para cá, quando eu nasci, meu avô foi vaqueiro dali e meu pai também já trabalhava lá. Ele saía de manhã cedo, quatro horas da manhã para tirar o leite”, contou.
Jorge viveu até os sete anos na ilha de Cajaíba. Durante esse tempo, sendo o irmão mais velho, ajudou o pai no trabalho e estudou em uma escola local, que atendia alunos até a quarta série do fundamental. Além disso, ele acompanhou algumas sucessões de proprietários, que se intensificaram principalmente durante o século XX. “O barão eu não posso dizer muita coisa, porque eu não cheguei a conhecer. Eu conheci a neta dele, eu tive o prazer de conhecer. Era uma pessoa muito boa, chamava-se Alice Maria”, lembrou. A neta do barão tomou posse das terras em 1965.
Depois de Alice Maria, a ilha teria sido vendida entre os anos 1980 e 90 para figuras conhecidas nacionalmente da emissora Rede Globo: José Wilker, Lima Duarte, Raul Cortez e Tony Ramos. O quarteto, assim como os proprietários anteriores, teriam comprado as terras com vários planos, mas, ao fim, nada foi concretizado e tudo continuou na mesma situação degradante. Até eles venderem para um grupo europeu chamado Property Logic Brasil Empreendimento e Participações Ltda. O grupo chegou para construir um grande empreendimento hoteleiro na ilha, o Eco Resort Ilha de Cajaíba. “Foi divulgado no mundo inteiro esse empreendimento, em todos os eventos incríveis do mundo se tinha uma maquete do resort presente”, afirmou a turismóloga do SAT municipal.
Mas o empreendimento não foi visto com bons olhos por parte da população. Várias ações foram tomadas contra a construção por conta dos impactos socioambientais que o resort causaria. Jorge foi uma das figuras contra a construção. Ele se mudou da ilha aos sete anos para estudar em Salvador e voltou nos anos 1990 como guarda municipal de Cajaíba. “Na época, eu fui contra o resort. Era uma coisa que não ia trazer benefícios nenhum para a população. Eles [empresários] não queriam os pescadores por perto. Eles decretaram uma distância de um quilômetro [para a prática de pesca] da ilha. Onde era que o pescador, que vive disso ia pescar”, indagou.
rojeto do Eco Resort Ilha de Cajaíba – Imagem: Arquiteto André Sá
O resort quase saiu do papel entre os anos de 2008 e 2009, mas, como a proprietária era uma empresa europeia, foi atingida pela crise econômica do período. Vendo os acontecimentos na época, a então gestão da prefeita Rilza Valentim resolveu desapropriar as edificações do casarão, engenho e uma longa faixa de terra delimitada até a chamada Praia do Sodré. O objetivo era criar um ambiente turístico e de lazer para a população.
A gerente do departamento de Patrimônio Histórico municipal, Bernadete Primo, foi contratada na época da desapropriação, quando foi criado o órgão. “Rilza tinha determinação em desenvolver o turismo como uma forma de impulsionar a economia, trazendo visitantes para explorar o que a região poderia oferecer. Contratou uma empresa para mapear a área e construir uma trilha ecológica, que conectava a ilha à praia. Seu objetivo era garantir que os munícipes pudessem usufruir do que era seu por direito, transformando Cajaíba em um polo turístico”, contou Bernadete.
Porém, aquilo que era um sonho de Rilza morreu com ela em 2014. As gestões seguintes não tiveram a mesma visão e resolveram dedicar esforços para outras questões.
Cenário de novela das nove – A Ilha de Cajaíba foi cenário da novela das nove da Rede Globo, Velho Chico, em 2016. O principal ambiente da teledramaturgia se passava no casarão de Cajaíba e outras cenas foram gravadas nas terras da ilha. A ficção transformou a Baía de Todos os Santos no rio São Francisco, e em vez da cana-de-açúcar, o algodão crescia nas terras da ilha.
“Eu estava no SAT e aí ligaram e se identificaram como sendo alguém da Globo que estava querendo visitar a ilha de Cajaíba porque queria conhecer e ver se se adequava para um cenário da próxima novela. Eu dei um pulo tão grande que o piso estourou”, lembra Alice Maria.
Uma equipe veio do Rio de Janeiro para conhecer a locação e, ao fim, escolheu Cajaíba como cenário de novela. A produção restaurou parte do casarão e do entorno. Paredes foram pintadas, peças antigas como figuras religiosas foram restauradas e grande parte do espaço foi limpo. Além disso, a Globo trouxe o famoso navegador Amyr Klink para projetar um píer exclusivo para facilitar as gravações.
Cena da novela Velho Chico – Imagem: Rede Globo
A novela foi um sucesso. Diversos astros da televisão estiveram na ilha, a exemplo de Rodrigo Santoro, Antônio Fagundes e Tarcísio Meira. Cajaíba ganhou visibilidade nacional, mas que não foi muito bem aproveitada. Após a saída da equipe de gravação, o local ficou sem vigilância e muitos pertences foram roubados.
“Quem vende a cultura é o turismo” – O grande desejo daqueles que conhecem a Ilha de Cajaíba é ver o patrimônio ser reconhecido nacionalmente por sua história, acontecimentos e pela beleza natural. Já foi mostrado que o turismo pode ser uma grande possibilidade, mas necessita de um projeto que se atente aos efeitos socioambientais e ao respeito à população local.
Imagem aérea da Ilha – Imagem: Prefeitura de São Francisco do Conde
Conforme a responsável pelo SAT municipal, Alice Maria, “quem vende a cultura é o turismo”. A cidade de São Francisco do Conde é repleta de atrativos culturais que podem ser apreciados pelas pessoas que vêm de fora. Samba Chula, carnaval cultural, tradições juninas e monumentos históricos como o convento de Santo Antônio, e a primeira escola agrícola da América Latina.
Hoje, Cajaíba vive em um silêncio histórico tão grande que, segundo boatos locais, os atuais moradores da ilha são almas daqueles que habitaram o local no período do Brasil Colônia. Há muitos anos lendas cercam a ilha. Alguns falam que já viram fantasmas, outros contam sobre barulhos de correntes sendo arrastadas. “Nós não temos um dado concreto que possa dizer que há uma prova de que há essas manifestações, mas a gente escuta muito da população e de populares esses relatos”, diz Marivaldo.
O fato é que até essas lendas poderiam gerar curiosidade de turistas se fossem bem promocionadas. A verdade é que há um longo caminho até a ilha se tornar um ponto turístico. Hoje em dia, grande parte do local é propriedade privada. A prefeitura só tem posse da parte desapropriada. De acordo com Bernadete Primo, Cajaíba é tombada pelo IPAC (Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia), mas precisa que o olhar do município se volte para a valorização do patrimônio. “A preservação do patrimônio histórico é essencial para atrair turistas e visitantes. Sem o acervo recuperado e preservado, corremos o risco de deixar tudo ruir. A luta é para que isso não aconteça e possamos valorizar nossa história e atrair novamente visitantes ao município”, considerou.
A ilha de Cajaíba é uma testemunha do passado do país que precisa de atenção especial para ter um futuro. A divulgação da história e da cultura do lugar por meio do turismo é uma das formas de fazer o espaço ser reconhecido. Este pode ser um fator que favoreça a utilização da ilha para o lazer da população e a movimentação da economia local. A valorização da Ilha de Cajaíba é uma das promessas que a próxima gestão municipal de São Francisco do Conde poderá realizar a partir de 2025. É importante que os moradores do município se atentem às propostas de utilização do lugar.