Legado de Dona Cadu resiste entre panelas, samba e memória

Trabalho e arte da ceramista e sambadeira resistem no Recôncavo Baiano por meio dos descendentes; desafio de manter as tradições mobiliza família

Por Joana Renata Silva

Dona Cadu no seu Memorial em Coqueiros-BA

Um mês antes do falecimento, Dona Cadu, como era carinhosamente conhecida a mestra ceramista, rezadeira e sambadeira, Ricardina Pereira da Silva, compartilhou suas memórias em uma entrevista marcada por lucidez e força. Resistente até os 104 anos, nascida em São Félix (BA), no Recôncavo Baiano, foi em Coqueiros, distrito de Maragogipe, que a matriarca construiu sua história a partir dos 22 anos. Antes disso, viveu na Fazenda Pilar, também em São Félix, onde começou a trabalhar ainda criança. Mulher negra, de origens afro-indígenas, Dona Cadu tornou-se referência cultural no Recôncavo, preservando saberes e fazeres ancestrais que moldaram sua identidade como mestra ceramista, sambadeira, rezadeira e líder comunitária.  

O trabalho começou cedo. Aos 10 anos, já ajudava os pais na roça e no sustento da família. A rotina era exaustiva. Ao amanhecer, trabalhava na roça. À tarde, dedicava-se ao barro, produzindo cerâmica com técnica aprendida desde pequena. Às 15h, seguia para a pedreira, onde quebrava brita até o entardecer. “Criei muque de quebrar brita, tenho orgulho de ser trabalhadeira”, contava com uma pitada de humor, revelando o orgulho de sua trajetória árdua e digna.  

Depois de chegar em Coqueiros, Dona Cadu não parou. Continuou a moldar o barro com mãos calejadas e cuidadosas, mantendo viva uma tradição que atravessa gerações. Ao mesmo tempo, criou os dois filhos biológicos, Antônio Balbino e Lúcia, e acolheu mais oito filhos “dos outros”, como dizia, reforçando sua vocação materna e comunitária. A casa sempre estava cheia e o trabalho nunca parou. Era uma vida de entrega, em que o barro e as pessoas recebiam cuidado.  

Mesmo em idade avançada, a vitalidade de Dona Cadu impressionava. Após sofrer uma fratura no fêmur, mantinha a determinação de voltar ao trabalho. Para ela, nunca foi apenas sobrevivência, mas uma forma de existência.  Dona Cadu afirmava que o segredo para chegar a uma idade tão avançada era trabalhar, manter o corpo ativo e ser feliz.

Entre as histórias compartilhadas na entrevista, Dona Cadu ainda ria ao lembrar dos tempos de juventude e dos irmãos: “Tive 10 irmãos, agora só sobraram 2, eu e outro. O resto já foram, feito bobos. Eu que não quero ir e nem vou tão cedo… ainda quero sair pelo mundo pra sambar”. A frase revelava, com simplicidade, o espírito resiliente e alegre de uma mulher que desafiou o tempo, a pobreza e as dificuldades, sem perder o humor e a leveza.  

Com a terra do Recôncavo nas mãos, Dona Cadu moldou mais do que cerâmica. Moldou histórias, tradições e afetos. Deixou um legado inapagável, que ecoa no barro, na memória coletiva de Coqueiros e no coração de todos que tiveram a chance de ouvir sua história.  

Panelas de barro feitas por Dona Cadu

Cadu rezadeira – Dona Cadu, além de ceramista e sambadeira, exerceu a função de rezadeira, sendo reconhecida por sua fé e pelas curas que realizava por meio das mãos e rezas. Durante a entrevista, a mestra compartilhou histórias sobre a prática espiritual e o impacto na comunidade.

A fé de Dona Cadu estava profundamente enraizada nas tradições afro-brasileiras, refletindo uma espiritualidade popular que integra elementos do catolicismo e das religiões de matriz africana. Ela utilizava orações, simpatias e o uso de ervas medicinais em seus rituais de cura, práticas comuns entre as rezadeiras do Recôncavo Baiano. 

Em sua residência, Dona Cadu utilizava um espaço para as práticas espirituais, onde recebia aqueles que buscavam suas rezas. Ela utilizava plantas como a arruda, conhecidas por suas propriedades terapêuticas, associadas a orações específicas para tratar males como o “mau olhado” e a “espinhela caída”. 

Sua atuação como rezadeira não se limitava ao tratamento de doenças físicas. A rezadeira também oferecia apoio espiritual, tratando o bem-estar emocional e psicológico dos membros da comunidade. Essa prática estava alinhada com a medicina popular, onde a fé e o cuidado com o próximo são fundamentais. 

O impacto de Dona Cadu na vida das pessoas que buscaram suas rezas foi significativo. Ela era vista como uma figura de confiança e respeito, cuja sabedoria e dedicação contribuíram para a preservação e fortalecimento das tradições culturais e espirituais da região.

Título de doutora honoris causa – Dona Cadu, símbolo da resistência cultural e espiritual do Recôncavo Baiano, foi homenageada com dois títulos de doutora honoris causa: pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), em 2020, e pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 2021. Os reconhecimentos acadêmicos destacaram a trajetória singular, consolidando-a como um dos grandes nomes da ancestralidade afro-indígena no Brasil.  

Entrega do Título Doutora Honoris Causa (Reprodução/Internet)

A entrega do título pela UFRB aconteceu em 16 de abril de 2021, em uma solenidade realizada no Memorial Dona Cadu, no Distrito de Coqueiros, em Maragojipe. O evento contou com a presença do reitor da UFRB, na época, professor Fábio Josué; da diretora do Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL), professora Dyane Brito Reis Santos; do chefe da TV UFRB, Ivan Americano; e da idealizadora do Memorial, Rosângela Cordaro. Ainda em meio ao contexto pandêmico, a cerimônia seguiu todas as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Segundo a professora Fabiana Comerlato, que propôs o título, o momento foi marcado por emoção e cautela. “Havia muito medo, mas também o cuidado necessário para que essa homenagem fosse feita da melhor forma possível, dentro das condições que o período permitia”.

Para Fabiana, o título representou muito mais do que uma honraria acadêmica. Foi a formalização do reconhecimento que já era consolidado pela própria comunidade. “Os títulos são expressões de reconhecimento, mas a Dona Cadu, o reconhecimento e a valorização dela vão muito além de um título. Um título é uma publicização, uma sinalização que a universidade está fazendo para a comunidade”, afirmou a professora.  

O memorial valorativo que embasou a outorga do título destaca Dona Cadu como um “Tesouro Humano Vivo”, nos termos propostos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que define o reconhecimento como a valorização de pessoas com alto grau de conhecimento e habilidades capazes de preservar ou recriar elementos do patrimônio cultural intangível. A “completude do ser” de Dona Cadu foi um dos principais critérios para o título, como explica Fabiana. “É muito difícil achar um adjetivo ou uma coisa que defina ela, porque ela era essa coisa múltipla. Quando a gente se perguntava ‘o que pode pautar esse reconhecimento como Doutora Honoris Causa?’ Era exatamente isso. A completude do ser dela, tudo que ela representava e essa força feminina, mulher afro-indígena, no Recôncavo. É muito forte”, opinou.

Dona Cadu já era amplamente reconhecida em sua comunidade antes de receber os títulos, mas a formalização acadêmica reafirmou sua importância não apenas para Coqueiros, mas para todo o Recôncavo. Além de celebrar a trajetória de uma mulher que simbolizava a ancestralidade, o reconhecimento também marcou o fortalecimento do diálogo entre os saberes acadêmicos e os saberes tradicionais. De acordo com Fabiana, a universidade não pode ser o único lugar do saber. “O título dela demonstra isso. Ele reconhece a singularidade de uma trajetória que já era consolidada pela comunidade”, considerou.

Ainda assim, há desafios relacionados ao reconhecimento acadêmico de mestres da cultura popular. Fabiana destaca as dificuldades financeiras enfrentadas por muitas pessoas que recebem o título de doutor honoris causa, defendendo que as universidades devem atuar como mediadoras para que esses mestres tenham acesso a projetos que garantam respaldo financeiro.  

Os títulos não apenas celebraram o legado de Dona Cadu, mas também reafirmaram a relevância da preservação cultural no Recôncavo. Entre o barro, o samba e as rezas, Dona Cadu consolidou-se como um elo vivo entre passado, presente e futuro, uma mulher cuja trajetória molda não só sua comunidade, mas também a memória e a identidade cultural da Bahia.

Projetos, arte e reconhecimento – A trajetória e a arte de Dona Cadu, com profundas raízes culturais no Recôncavo Baiano, têm sido perpetuadas por meio de diversos projetos e iniciativas que valorizam o legado. De exposições que revelam a riqueza estética da cerâmica a oficinas que ensinam as técnicas tradicionais que dominava, as ações desempenham um papel crucial no reconhecimento e na preservação da obra da mestra em nível local, regional e nacional.

Uma das iniciativas mais relevantes é o Memorial Dona Cadu, localizado no distrito de Coqueiros, em Maragojipe, que não apenas guarda a memória da artista, mas também funciona como espaço de promoção de sua arte e de ações educativas. Garantindo que o conhecimento ancestral transmitido por Dona Cadu não se perca. Além disso, a produção ceramista tem sido tema de exposições em museus e centros culturais, ampliando o alcance de da obra para públicos diversos.  

Outro ponto de destaque são os documentários e produções audiovisuais que exploram a vida e o trabalho de Dona Cadu. As produções não só registram a história da artista, mas também contextualizam a arte no panorama mais amplo da cultura afro-indígena do Recôncavo. Esses registros são fundamentais para levar o nome de Dona Cadu para novos espaços e públicos, especialmente, em um cenário no qual as artes tradicionais enfrentam o risco de invisibilidade.  

Oficinas que resgatam o processo de produção da cerâmica artesanal promovidas por instituições culturais e educativas também se mostram indispensáveis. As atividades permitem que jovens artistas entrem em contato com as técnicas e os valores que norteavam o trabalho de Dona Cadu, perpetuando não apenas o fazer artístico, mas também os significados espirituais e culturais.  

As iniciativas não apenas celebram a arte de Dona Cadu, mas também evidenciam a importância de valorizar o patrimônio cultural imaterial. Ao promover a obra da mestra, os projetos ampliam o reconhecimento, permitindo que as futuras gerações conheçam e respeitem a contribuição singular de Dona Cadu para a história e a cultura brasileira.

Herança viva: panelas, samba e o futuro do legado – O legado cultural de Dona Cadu, mestra ceramista, sambadeira e rezadeira, permanece firme no Recôncavo Baiano, por meio das mãos da família. A neta Luana tem se dedicado à preservação dos saberes e práticas que Dona Cadu cultivou durante a vida. Entre os principais pedidos da avó estava a continuidade da cerâmica e do samba, elementos fundamentais da identidade e herança. 

Dona Cadu e a neta Luana

“Foi um pedido dela, que a gente não deixasse o samba e a cerâmica morrerem. E estamos fazendo isso”, diz Luana, que, como ceramista, seguiu os passos de Dona Cadu, mantendo viva a tradição de moldar o barro e de participar das homenagens à avó. Luana é a responsável pela continuidade do trabalho com cerâmica, participando de exposições e produções que destacam a arte que Dona Cadu soubera tão bem representar.

O samba, outra paixão de Dona Cadu, também segue sendo um elo de união para a família. O grupo Filhos de Dona Cadu, liderado por Antônio Balbino, filho biológico da mestra, mantém a tradição do samba de roda. O grupo segue ativo e realiza apresentações, sendo Balbino o vocalista. Lúcia, filha de Dona Cadu, segue a tradição como sambadeira. O samba, assim como a cerâmica, se torna mais do que uma prática cultural, é um laço afetivo e comunitário que atravessa gerações.

Apesar de Luana continuar a arte da cerâmica, ela revela que a ausência da avó tem sido o maior desafio. “Eu não sou tão desinibida quanto ela. A minha avó tinha uma presença tão forte. Ela sabia falar com todos e eu ainda estou aprendendo a lidar com isso”, comentou. Além disso, no campo da reza, ainda não houve continuidade às práticas de Dona Cadu. Embora a neta tenha testemunhado as rezas feitas pela avó e saiba algumas, ninguém da família exerce a função de rezadora de forma formal. O tio, Balbino, por sua vez, realiza algumas rezas para familiares, mas sem a mesma prática que Dona Cadu tivera em vida.

Uma das novidades é a criação do Instituto Dona Cadu, que está em andamento, com Luana liderando o processo de formalização. “O instituto é uma forma da história dela continuar. Nosso objetivo é que o legado de Dona Cadu não seja esquecido”, afirma. Contudo, Luana cobra apoio financeiro, especialmente, considerando os custos envolvidos na prática da cerâmica, como o barro, bambu, lenha e tauá, que são caros e tornam as aulas da atividade inviáveis sem auxílio externo. Para o instituto ser sustentável e cumprir o papel de formação de novas gerações, Luana acredita que o governo poderia contribuir mais com o fomento à cultura e ao ensino das tradições.

Em vida, Dona Cadu teve muita visibilidade, mas o reconhecimento financeiro nunca foi suficiente. O trabalho dela envolvia amor, mas também era o sustento da família. Luana ao mesmo tempo em que honra a memória da avó, percebe a importância de um maior reconhecimento institucional e financeiro para que o legado de Dona Cadu continue a prosperar.

Luana se emociona quando fala de Dona Cadu. “No mundo não existia ninguém melhor. Não tenho palavras para descrever quem era a minha vó.” As palavras de Luana refletem o sentimento de toda a família que se empenha em manter vivo o legado da mestra, oferecendo às futuras gerações não apenas arte e cultura, mas também uma rica herança de amor e resistência.