Missionário do sertão pode virar santo no interior da Bahia

O Vaticano declarou que não houve impedimentos formais ou teológicos para o início da investigação, que é o primeiro passo para a beatificação

Gabriela Souza

Padre Alfredo Haasler viveu em Jacobina, a 337 Km de Salvador. E, para aqueles que conviveram com ele e guardam na memória as lembranças, a opinião é unânime: “Ele foi e é um santo!”. Para a Igreja Católica, essa “graça” está mais perto de ser alcançada. O processo para a beatificação do padre avançou mais uma etapa em outubro de 2024. A Congregação para a Causa dos Santos, no Vaticano, divulgou o ‘Nihil Obstat’, documento em latim que significa ‘nada impede’, o que é o primeiro passo para considerar oficialmente a santidade.

A pedagoga aposentada Normilda Fonseca, ex-professora paroquial. Imagem: Gabriela Souza

Missionário de corpo e alma

Conhecido como “Missionário do Sertão” por suas ações sociais, educativas e espirituais, no sertão da Bahia, o austríaco Alfredo Bernardo Maria Haasler, da Ordem dos Cistercienses (O. Cist),  nasceu em 1907. Filho de pais religiosos, era o mais novo entre os sete irmãos. Aos 2 anos, perdeu o pai, e a mãe viúva criou os filhos na tradição católica. Ele morava e foi educado em um mosteiro, local onde os monges vivem isolados. E aos 26 anos, ordenou-se padre.

Em 1938, padre Alfredo embarcou de navio para o Brasil, com a missão de assumir-se vigário, cargo destinado para representar o bispo na Paróquia de Santo Antônio, na Igreja Matriz de Jacobina. Ele chegou à cidade em um período marcado pela predominância da economia agrária, da extração de ouro e da agricultura de subsistência. A região enfrentava crises econômicas agravadas pelas secas e intensificavam a pobreza e a desigualdade.

Mapa de abrangência da Paróquia de Santo Antônio

O poder político era concentrado e controlado pelas elites locais, enquanto a falta de serviços básicos, especialmente nas áreas de saúde e educação, impactava a vida do povo pobre sertanejo. “Não posso evangelizar em uma região onde o povo não sabe ler e passa fome, antes de evangelizar, é preciso cuidar dos pobres”, relembrou o austríaco padre José Hehenberger, O. Cist, as conversas com o amigo padre Alfredo.

Inicialmente, padre Alfredo não foi bem recebido. O povo de Jacobina não aprovou experiências anteriores com religiosos estrangeiros, como os franciscanos e os jesuítas, que foram expulsos da região. Ele também enfrentou desafios por parte da elite local, chegou a ser preso e perseguido. No entanto, por meio de acordos estratégicos, conseguiu obter apoio, financiamento, doações de terras e outros recursos necessários para viabilizar as ações sociais.

“Santinho” de comemoração aos 40 anos de padre Alfredo em Jacobina. Acervo: Arlene Marques

Cada vez mais próximo da santidade 

Atualmente chamado de “Servo de Deus”, título destinado aos fiéis introduzidos na beatificação. O processo de padre Alfredo Haasler entra em uma nova etapa. A Diocese de Senhor do Bonfim dará continuidade às análises de documentos, relatos e possíveis milagres atribuídos a ele. 

A fase diocesana, como é chamada, é responsável por reunir provas que serão encaminhadas à Causa dos Santos, no Vaticano. Após a análise de profissionais como médicos, advogados e historiadores, e comprovada a prática das virtudes cristãs em grau heroico, ele pode ser declarado Venerável e, posteriormente, ser beatificado.

A canonização, que oficializa um fiel como santo, passa por várias etapas. Após ser declarado Venerável, é necessário comprovar um milagre para que padre Alfredo receba o título de Beato. Para que ele seja canonizado, é preciso comprovar um segundo milagre, que deve ter ocorrido após o reconhecimento do primeiro.

O processo de beatificação do religioso teve início em 2022, após a Diocese de Senhor do Bonfim receber o pedido feito pelo padre José. Ele contou que foi motivado pelas solicitações do povo: “Você já encaminhou alguma coisa?. Padre Alfredo fez benefícios tão grandes, desenvolveu toda essa região de Jacobina, ele precisa ser colocado em algum lugar”, indagavam.

O vigário é sempre lembrado por seu jeito rígido com as leis da Igreja, mas caridoso em prol dos pobres. Ele percorria toda a região de Jacobina montada em um jumento, visitava uma comunidade por dia e distribuía medicamentos gratuitos aos doentes. 

O mosteiro da Áustria enviava dinheiro para ele realizar visitas na cidade natal, mas ele utilizava esse dinheiro para ajudar os necessitados. “A população de Jacobina está na esperança dessa beatificação dele, dizem que ele é santo, realmente ele é. Quem conheceu o padre Alfredo sabe que foi um santo vivo. Um trabalho idêntico ao que a irmã Dulce fazia em Salvador, ele fazia aqui”, pontuou padre Áureo Sampaio, ex-sacristão de padre Alfredo.

Padre Áureo Sampaio, Imagem: Gabriela Souza

Monges de Brancos 

Na primeira metade do século XX, a implantação do Estado Laico pela República Brasileira em 1889 resultou na perda de privilégios da Igreja Católica, como o acesso a cargos públicos e o financiamento estatal, forçando-a a depender das próprias iniciativas econômicas e das doações de fieis.

Nesse contexto, a Igreja estabeleceu um projeto de restauração religiosa que buscou ampliar sua influência por meio de ordens missionárias europeias, que se dedicaram à criação de instituições educacionais, desde escolas paroquiais até universidades. Essa estratégia visava não apenas evangelizar, mas também fortalecer o avanço de outras ideologias e a laicidade no sistema educacional brasileiro.

Na Bahia, o arcebispo Augusto Álvares da Silva desempenhou um papel central nesse processo. Em 1933, criou a Diocese do Senhor do Bonfim e delegou ao bispo Hugo Bressane a missão de implementar o projeto de restauração católica na região. A Paróquia de Santo Antônio da Jacobina tornou-se um polo estratégico, impulsionado pela chegada da Ordem Missionária Cisterciense, em 1938, conhecida como “monges de branco” devido às suas vestes claras.

A atuação da ordem foi destacada pela fundação do Mosteiro de Jequitibá, no município de Mundo Novo, e pela criação de uma rede de Escolas Paroquiais liderada pelo padre Alfredo Haasler. Esse trabalho desempenhou um papel crucial na consolidação do catolicismo e no desenvolvimento educacional e religioso no sertão baiano.

Paróquia de Jacobina. Foto: Juventino Rodrigues, sem data, Acervo digital NECC-UNEB

Escolas Paroquiais 

“Eu conheci padre Alfredo quando fui aluna da escola paroquial em Gonçalo, terra onde eu nasci. Eu estudei nas escolas paroquiais da primeira série até a quinta série e depois me preparei para ser professora ‘leiga’ das escolas da zona rural”, relembrou a pedagoga aposentada Normilda Fonseca, ex-professora paroquial e uma das representantes da comissão de apoio a beatificação.

Ela conta que padre Alfredo realizou seu batizado, a primeira comunhão, enquanto era aluna paroquial, a crisma e o seu casamento, esses são quatro dos sete sacramentos da iniciação cristã.

Por volta de 1973, depois de um tempo sendo professora na zona rural, padre Alfredo a chamou para ser professora paroquial, e, nesse momento, ela voltou a estudar. Como educadora, ela tinha um período de formação, além de receber um salário mínimo, com carteira assinada e todos os direitos trabalhistas da época.

Normilda Fonseca. Imagem: Gabriela Souza

Um dos principais pilares do trabalho do padre Alfredo foi a educação. Quando ele chegou a Jacobina, não havia prédios disponíveis para que as escolas funcionassem. Por isso, ele alugava casas grandes para abrigar as instituições.

O médico Flávio Mesquita, então prefeito da cidade, pensou em contribuir para a construção de escolas paroquiais, mas não poderia destinar recursos municipais para uma instituição que não fosse pública. Foi então que o governo federal destinou uma verba para a realização de obras no período das secas, permitindo que os prefeitos utilizassem esses recursos em diversas construções.

 “Como a escola inicialmente não tinha estrutura, a construção do prédio foi muito positiva, principalmente para o desenvolvimento educacional de Jacobina”, pontuou a ex-professora paroquial Arlene Marques, mulher de Flávio Mesquita.

Padre Alfredo liderou a construção de 48 escolas paroquiais, das quais 45 se consolidaram, atendendo crianças e jovens do sertão. Elas possuíam uma estrutura própria, com salas de aula, secretaria e espaço para as crianças brincarem. Com o aumento do investimento do governo na educação, as escolas foram gradativamente extintas, sendo as poucas que restaram transferidas para a administração estadual.

Escola paroquial em Jacobina. Fotos: Gabriela Souza e Acervo FEPPAHJA

Saúde

A saúde foi outro aspecto fundamental na missão do “Servo de Deus”. A população sofria com a falta de atendimento médico, e o Sistema Único de Saúde (SUS) ainda não existia, o que levou o padre a atuar diretamente nessa área. Embora não fosse médico, há relatos de que ele tinha o “dom” para diagnóstico.

Em um artigo escrito pelo médico Flávio Mesquita, em 1975, ele reflete sobre a formação profissional do padre: “Com frequência, eu recebia doentes enviados por ele e sempre acompanhados de uma carta, onde descrevia os sintomas e o possível diagnóstico. Normalmente ele acertava o diagnóstico da doença”.

Artigo de Flávio Mesquita e carta enviada por padre Alfredo

Arlene Marques contou que o vigário acompanhava os médicos da região e sempre recebia “amostras grátis” para medicar a população. Quando se tratava de casos que necessitavam de cirurgia, ele solicitava ajuda para o diagnóstico dos pacientes. Além disso, buscou apoio internacional e nacional para suprir as demandas da região, utilizou recursos obtidos por meio de amigos deputados no Brasil e parcerias com a Áustria para financiar infraestrutura de saúde.

Padre Alfredo em atendimento. Foto: Acervo FEPPAHJA

Memorial Padre Alfredo Haasler 

Vídeo Memorial. Imagem: Gabriela Souza

Padre Alfredo morreu em 1997, em Jacobina. A memória do “Servo de Deus” é preservada na Fundação Educativa Popular Padre Alfredo Haasler e José Assis (FEPPAHJA). “Neste museu está a memória viva dele!”, disse Normilda Fonseca com convicção. 

“Nosso trabalho é divulgar o memorial, abrir para visitas, não só da comunidade Jacobinense, mas também de outros municípios”, destaca. Para isso, em 2025, está sendo organizado um projeto para receber as escolas das regiões onde o padre andou e levá-las à igreja matriz, onde o padre está sepultado. “Para que pessoas de outros municípios visitem o memorial para que ele não seja esquecido”, apontou Normilda.

O memorial foi inaugurado em fevereiro de 2016 e guarda lembranças do padre, como objetos sacros, fotos, vestes e itens que ele utilizou, como o estetoscópio usado nas consultas, a cela do jumento que montava, uniformes das escolas paroquiais e uma quantidade de outros objetos.

Apesar de muitas pessoas estarem contentes com o processo de beatificação, boa parte da população de Jacobina desconhece os feitos do padre. Arlene Marques conta que a filha de um colaborador e amigo do padre Alfredo mandou fabricar o busto do vigário para ser colocado em uma das praças da cidade, mas não houve ação efetiva da paróquia junto aos órgãos públicos para que ele fosse inserido em algum lugar.

Imagens: Tiago Sousa.

A paróquia de Santo Antônio, onde o padre está sepultado, não quis se pronunciar sobre o assunto.

SAIBA MAIS: 

Documentário Padre Alfredo Haasler o. Cist. – missionário de corpo e alma

REFERÊNCIAS: 

Pinheiro, Gilmara Ferreira de Oliveira P719m. Os “Monges de Branco” e os Sertões das Jacobinas: Catolicismo e Restauração nas ações missionárias de Pe. Alfredo Haasler. (1938/1965). / Gilmara Ferreira de Oliveira Pinheiro. – Feira de Santana, 2012. 223 f.: il. Acesso em: 19 nov. 2024.

Congregação Para as Causas Dos Santos. Disponível em: INSTRUÇÃO PARA A REALIZAÇÃO DOS INQUÉRITOS DIOCESANOS. Acesso em: 17 dez. 2024.