Mulheres negras enfrentam resquícios de escravidão nas relações amorosas

Em pleno século XXI, elas ainda não ocupam o imaginário social da mulher padrão para amar e constituir uma família

Fernanda Amordivino

*Publicação de dezembro de 2022

“Eu não era uma pessoa pra ser mostrada, eu tinha características físicas de uma pessoa boa para o sexo, mas não para um relacionamento sério, não para ser apresentada pra família.”. É o que afirmou Tainara Mendes, estudante de Serviço Social, de 27 anos, que representa o sentimento de tantas outras mulheres negras, que sofrem até hoje os resquícios da escravidão.

Como consequência do machismo, todas as mulheres são sexualizadas, pois elas são socialmente construídas como um objeto de prazer do homem. Porém, quando se trata de mulheres negras, elas também têm que lidar com o racismo, que se manifesta de diferentes formas na sociedade brasileira, alguns exemplos são a hipersexualização e a solidão que atravessam a sua existência.

Tainara Mendes, natural de São Felipe, mas que atualmente mora em Cachoeira, percebeu no início da sua adolescência a hipersexualização sobre o seu corpo. Nos momentos em que passava por alguma construção civil, os pedreiros a chamavam pra perto, e ela se sentia acuada e chegava a pensar que o erro estava nela.

Tainara Mendes percebeu no início da sua adolescência a hipersexualização sobre o seu corpo. Foto: Arquivo pessoal

Também foi no início de sua adolescência que Jaqueline Santos, de 24 anos, passou por situações parecidas.  Ela contou que um homem mais velho flertou com ela e, por sua tia estar por perto, foi ela quem a defendeu, mas o rapaz alegou que, por Jaqueline ter o “corpo de uma mulher adulta”, ele não imaginou que ela fosse menor de idade. A violência que afeta a vida das mulheres negras lhes nega até o direito de viver plenamente a infância, e se revela também nesses episódios de suas vidas.

Hipersexualização e saúde mental

A psicóloga Eduarda Rodrigues, de Jataí, Goiás,ressaltou que o impacto de ter o corpo tratado como um objeto sexual, retira das mulheres negras o reconhecimento de outras potencialidades que elas têm, e cria uma armadilha quando elas passam a acreditar que a única forma de valorização de si vem pelo seu corpo e pelo prazer que pode proporcionar ao outro.

Ela aponta que uma das formas para cuidar da autoestima nesse cenário é saber dos protagonismos de luta de suas ancestrais, da sua história enquanto povo antes da escravização e da resistência para pôr fim a esse regime. “Auto estima é saber de onde vem, saber do seu potencial e recusar situação contrária a isso”, afirmou ela.

A psicóloga Eduarda Rodrigues: uma das formas para cuidar da autoestima é saber dos protagonismos de luta de suas ancestrais. Foto: Reprodução (Instagram/ @psico.eduardarodrigues)

O preterimento afeta o emocional das mulheres negras

A lógica escravagista colocou a mulher negra como meio de lucratividade econômica e como um produto sexual. Com o passar dos tempos, esse pensamento foi se fortalecendo na sociedade, e as suas consequências podem ser vistas também no preterimento afetivo que muitas mulheres negras enfrentam.

A estudante de Jornalismo Gabriela Santos, 20 anos, natural do Rio de Janeiro, mas que atualmente é moradora de Cachoeira, por exemplo, conta que durante um relacionamento passou por várias situações de ser trocada e não ser prioridade. “Teve uma vez que a pessoa com quem eu estava me relacionando estava mexendo no cabelo de uma amiga, e eu perguntei o porquê dele não fazer o mesmo comigo, e a resposta foi que era por conta do meu cabelo. O cabelo da minha amiga era liso e o meu é crespo. Ele justificou que no cabelo da minha amiga os anéis de seus dedos não embolavam”, ressaltou.

A estudante de Jornalismo Gabriela Santos teve um relacionamento no qual passou por situações de não se sentir prioridade. Foto: Arquivo pessoal

Roberta Evelyn, coordenadora pedagógica da rede pública de ensino, 43 anos, moradora de Cruz das Almas, também relata que por muitas vezes foi preterida. Ela acreditava estar em um relacionamento recíproco, mas, de repente, a pessoa aparecia casada com uma mulher branca.

Questionada como lida com essas situações, ela respondeu: “Eu sou uma canceriana, com ascendente em sagitário, então isso me toma por inteiro. E se eu disser a você que eu não chego na frente do espelho e não me questiono o porquê de alguém que eu acho que me amava e que eu amo ter feito uma outra opção em favor da cor da pele, eu estarei mentindo. Então nessa hora a gente cai”.

Roberta Evellyn também contou que em um relacionamento foi preterida por uma pessoa branca. Foto: Arquivo pessoal

De acordo com Eduarda Rodrigues, o preterimento influencia a forma de se relacionar afetivamente das mulheres negras, pois ele constantemente as ensina que o amor é utópico e que elas não servem para isso, fazendo com que muitas delas não intencionem um relacionamento duradouro. A psicóloga também diz que outra característica muito comum é iniciar relacionamentos já aguardando o fim, “algumas já terminam antes, como atitude de proteção”, disse ela. Gabriela Santos e outras entrevistadas, que preferiram não ser identificadas, disseram que o preterimento lhes causou inúmeras consequências, como o sentimento de inferioridade e o medo de não ser aceita. Ser preterida é duvidar de si mesma, é se questionar se é o suficiente”, afirmou Gabriela Santos.

A solidão da mulher negra

Mulher Negra: Afetividade e Solidão é um livro da autoria de Ana Claudia Lemos Pacheco. Em um trecho ela registra que a solidão entre as mulheres negras seria fruto da tensão social que as associa ao sexo, às relações transitórias, ao “amor físico”, afastando-as dos projetos de vida “conjugal” e do amor “verdadeiro”.

Tainara Mendes ressalta que por consequência de um passado histórico, ela não consegue enxergar as mulheres negras na mesma posição que as brancas no amor romântico, pois estas são as mais preferidas para casar e construir uma família. “Eu ainda não me vejo como alguém que pode ser assumida publicamente, pode ser por consequência dos meus traumas do passado, mas eu ainda não me vejo nesse lugar de ter alguém que goste verdadeiramente de mim”, disse. De acordo com Eduarda Rodrigues, as mulheres negras podem passar a se enxergar como indignas do amor, e que isso acontece por toda uma estrutura social, cultural e midiática que a representa assim e coloca seu valor como único, nesse lugar de objeto sexual.

Luana Souza é uma jornalista negra que tem ganhado cada vez mais visibilidade, e tem se tornado inspiração para outras mulheres negras. Quem assiste ela confiante na TV pode não imaginar que nem sempre foi assim. Ela conta que enfrentou o auto-ódio e que compreender os processos por trás disso levou anos, por isso, a recuperação da sua autoestima é um exercício ainda recente. “A gente precisa aprender a olhar para si mesma não com os olhos do racismo, mas com a visão da ancestralidade que nos enxerga como poderosas e inteligentes”, afirmou Luana Souza.

A jornalista Luana Souza enfatiza que é se entender digna de afeto, ainda que a sociedade diga o oposto. Foto: Revista Afirmativa

Luana deixa um recado para as mulheres negras: “O primeiro passo é se entender digna de afeto, ainda que a sociedade diga o oposto. O autoamor pode ser uma ótima saída. Quando eu entendi que quem melhor poderia cuidar de mim era eu própria, minha vida mudou. Estudei, arrisquei, fracassei inúmeras vezes, até chegar aqui. Hoje não aceito qualquer relação que me coloque em situação de subjugação ou desafeto. É o que desejo para todas as mulheres negras: insubmissão.”.

A psicóloga Eduarda Rodrigues diz que as mulheres negras precisam se descolar o máximo do racismo, buscando se fortalecer em comunidade, no movimento negro e no movimento feminista negro para potencializarem suas raízes, o olhar sobre si e enfim resgatar a possibilidade de confiar e se entregar à experiências que podem ser positivas.

“Quando entendemos o racismo em seus mecanismos, conseguimos identificar quais terrenos são mais seguros para uma aposta afetiva”, ressaltou a psicóloga Eduarda Rodrigues.

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