O “Moulin Rouge” de Cachoeira: entre o desejo, o turismo e a resistência

A Rua do Brega guarda, entre luzes vermelhas e altares silenciosos, histórias de mulheres, afetos e resistências e virou um point por turistas, boêmios e curiosos na cidade heroica

Violleta Paixão

A rua Treze de Maio, renomeada pelos moradores como “Rua do Brega”, abriga há décadas casas que misturam trabalho sexual, música e sociabilidade noturna. Sem placas, nem fachada chamativa, esses lugares funcionam como pontos de resistência e economia informal — sobrevivendo entre o sigilo e a tradição. O brega mais conhecido é o da saudosa Dona Cabeluda, como ficou conhecida Renildes Alcântara dos Santos, que deixou um legado que até hoje ressoa nas histórias contadas pelos mais velhos.

Durante uma de minhas vivências noturnas, fui com uns colegas ao brega Point das Morena, outro conhecido reduto do meretrício cachoeirano, onde já era possível ouvir o arrocha alto, vindo de dentro do bordel. Ainda do lado de fora do estabelecimento.

Lá dentro, a luz vermelha dominava tudo. Havia dois focos mais claros: um deles vinha da jukebox — dessas caixas de música clássicas de bar, onde por alguns reais você escolhe até três músicas de uma playlist super atualizada. O outro foco vinha do bar, onde estavam um homem e uma mulher cuidando dos pedidos. O local contava com cerca de seis portas e um corredor um pouco mais estreito, no fim do qual havia uma luz branca — que levava ao banheiro… e talvez a algum outro lugar que, até hoje, eu não sei o que guarda.

Sentamos em uma mesa no centro do salão. O ambiente estava vazio, com poucas pessoas. Em uma mesa no canto, dois rapazes conversavam com uma das mulheres da casa. Em frente a eles, ficava o quarto dela — o que me fez entender que sim, ela trabalhava ali. 

Logo percebi que aquele espaço era mais do que um simples bar ou casa noturna. No alto do bar, duas santas observam tudo. Santa Luzia, protetora dos olhos. Santa Bárbara, do trovão. Embaixo, o calor dos corpos e dos desejos. Talvez elas estejam ali por fé. Talvez por proteção. Talvez porque aqui, como em quase todo lugar do Brasil, o sagrado e o profano dividem o mesmo teto.

Em Cachoeira, na Bahia, o brega ainda vive à sombra da vergonha pública, mesmo sendo procurado por muitos. Mas talvez o “Point das Morenas” ou o “brega de Dona Cabeluda”, com suas jukebox, seus altares e luzes vermelhas, seja mais próximo de outros lugares que abrigam prostituição e depois viraram famosos pontos turísticos — como o Moulin Rouge, em Paris, na França, ou o Bataclan, em Ilhéus, no sul da Bahia   — um palco onde o corpo dança entre o desejo e a resistência. O que muda é quem tem o direito de olhar. Talvez a verdadeira diferença entre esses locais e Cachoeira não esteja no lugar, mas no valor que damos ao corpo e à memória. Quem decide o que é arte e o que é pecado?

“Dona Cabeluda” comandou por décadas o brega de mesmo nome. Crédito: Ana Lucia Albuquerque/CORREIO

O que a cidade prefere não ver 

Os holofotes sempre estiveram voltados para os bordéis — ainda que com intenções distintas — em diferentes países e épocas. Lugares como Moulin Rouge, em Paris, ou o Bataclan, no centro de Ilhéus, no sul da Bahia… guardam memórias e foram ressignificados como pontos procurados pelos turistas. 

Fachada do famoso cabaré de Paris CREDITO: Le Plat Du Jour

Na glamourosa Paris, conhecida como cidade luz ou do amor, o Moulin Rouge virou ponto turístico com filas na porta e flashes permitidos. No coração da capital da França do século XIX, surgiu esse cabaré onde erotismo e espetáculo se fundiam em uma coreografia de sedução e performance.

Já em Ilhéus, no sul da Bahia, o Bataclan, fundado em 1926, o famoso cabaré da cafetina-Mór Maria Machadão (que foi inclusive retratada na obra Gabriela, de Jorge Amado) funcionava como um prostíbulo frequentado por coronéis, artistas e figuras políticas — onde o prazer se misturava à boemia e ao poder. Foi reaberto como Centro Cultural Bataclan em 2004, reunindo bar, restaurante, café e espaço para eventos.

O atual Centro Cultural Bataclan era o cabaré de Ilhéus comandado por Maria Machadão. Foto: Divulgação do Instagram

No Recôncavo Baiano, o “brega de Dona Cabeluda”, em Cachoeira, carrega até hoje a força de sua fundadora, mesmo após sua morte em 6 e maio de 2024. Mais do que ponto de prostituição, o espaço se tornou refúgio e rede de apoio para muitas mulheres, funcionando como abrigo silencioso em uma cidade que ainda prefere não ver.

Ao pensar em estabelecimentos como esses, talvez o primeiro impulso seja reduzir sua “função” ao sexo. Mas, na prática, todos eles atraíram — ou vêm atraindo — outros públicos. O sexo, como tabu social antigo, confere a esses lugares uma aura de “proibido” que instiga a curiosidade. Em Cachoeira, essa curiosidade parte de visitantes, novos moradores e estudantes. Para boa parte da população local, no entanto, permanece o tabu: muitos crescem sem saber exatamente o que há na famosa rua, mas aprendem desde cedo que ali “não se deve ir”.

“Durante muito tempo, a gente não tem consciência do que é o espaço. Fui lá só uma vez… e foi pra comprar cerveja”, conta G.L., 21 anos, morador de São Félix — em um tom que mistura lembrança e justificativa, como se precisasse explicar o motivo de ter entrado ali.

Essa preocupação não é tão evidente entre os frequentadores de uma praça próxima, nem entre os turistas que vão até o local — tão conhecido que com certa frequência ganha as manchetes dos jornais da capital baiana. Para F.B., 34 anos, morador de Belo Horizonte, Minas Gerais, que veio à cidade passar o São João, a experiência foi bem diferente.

“No brega de Cabeluda encontrei um alicerce, uma referência. Há relações fortes com a cidade e entre as pessoas que coabitam aquele espaço. É mais próximo da representação das casas de prostituição que eu tinha por meio dos livros, das novelas.”

O olhar de fora, menos atravessado pelos estigmas locais, revela que o brega pode ser visto como um lugar de memória viva — e não só de desejo ou marginalidade.

As motivações podem variar: alguns buscam uma conversa fiada, outros uma cerveja gelada, a música ou as meretrizes. No final das contas, quando uma das encruzilhadas da noite se cala, é a Rua do Brega que brilha.

Acessar as pessoas que trabalham nesses espaços ainda é uma missão delicada e complexa. As meninas preferem não dar entrevistas, mesmo que não sejam identificadas. Acredito que isso aconteça por uma questão legítima de autopreservação. Há alguma razão para aceitar mais uma forma de “exploração” — desta vez de suas falas — sem a plena confiança do que será feito com elas?

Romantizar não é reparar

O reconhecimento desses locais não é um incentivo para outras meninas entrarem para a vida da prostituição, até porque muitas escolhem esse caminho por se verem sem muitas opções — e é nesses lugares que elas são acolhidas. Dona Cabeluda sempre foi conhecida exatamente por esse acolhimento e, acima de tudo, por impor respeito em seu estabelecimento.

Quando esses espaços ganham fama, acabam sendo retratados de forma romantizada. E, se tem uma coisa que não é fácil, são as vidas dessas mulheres — que são julgadas pelas mesmas pessoas que, no silêncio da madrugada ou até mesmo à luz do dia, vão atrás de seus serviços, mas preferem negar por ainda ser um tabu social. Em tempos de plataformas online de entretenimento adulto, ainda há quem prefira a moda antiga ou procure esses espaços em busca de outros prazeres.

Enquanto alguns exploram a imagem desses espaços como parte da paisagem cultural da cidade, são elas — as trabalhadoras — que continuam na borda, sem segurança, sem escuta e sem reparo. 

Talvez, no fim das contas, não seja a prostituição que incomoda tanto, mas o espelho que esses lugares devolvem: onde desejo, hipocrisia, desigualdade se misturam. No palco silencioso da Rua do Brega, seguem cenas que a cidade insiste em não ver — mas que falam mais dela do que se gostaria de admitir.