Rituais de passagem de ingresso na universidade reafirmam o Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL) como espaço de liberdade
Marcelle Maia
Os calouros e veteranos chegam tímidos, mas a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), em Cachoeira, os recebe de braços abertos. A cultura do trote no campus de Artes, Humanidades e Letras (CAHL/UFRB) ultrapassa a tinta guache e as brincadeiras: ela é também marcada por olhares, beijos e corpos que se relacionam fisicamente. Em meio às festas e o calor do Recôncavo, a ‘pegação’ se tornou um dos rituais mais comentados – talvez o mais esperado – das recepções de boas-vindas na universidade.
O trote é, segundo a literatura, um verdadeiro ritual de passagem. Como destaca o artigo “O trote como ritual de passagem: o universal e o particular”, escrito por Kimiye Tommasino e Leila Sollberger Jeolás, doutoras em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL), esse momento carrega elementos simbólicos que anunciam a transição do jovem para um novo ciclo social: a vida universitária. Acolhimento, ressignificação da identidade e pertencimento a um grupo fazem parte do processo. Essa leitura se entrelaça com as origens históricas do trote.
Segundo reportagem do Estadão, a prática remonta à Europa da Idade Média, onde surgiu como um rito integrativo nas primeiras universidades. No Brasil, os primeiros registros aparecem após a chegada da Família Real, quando os rituais passaram a marcar simbolicamente a entrada no ensino superior, com o intuito de promover a convivência entre calouros e veteranos e incentivar cuidados coletivos com a saúde e o ambiente acadêmico.
No CAHL/UFRB, em Cachoeira, onde estão localizados os cursos de Artes Visuais, Ciências Sociais, Cinema e Audiovisual, Comunicação Social (Jornalismo e Publicidade & Propaganda), História, Museologia, Serviço Social e Gestão Pública, o trote assume contornos próprios: é libertário, é sensual e é político.
Desde o governo Bolsonaro, quando a universidade passou a ser chamada de “balbúrdia” por aqueles que se autodenominam defensores da moral e dos bons costumes, Cachoeira se afirma como território de capital intelectual e liberdade, inclusive afetiva e sexual, garantida pelos estudantes veteranos, que passam a bola para os novos desde 2005, um fluxo constante que, de acordo com uma pesquisa interna realizada em 2024.2, soma 1.275 graduandos ativos no campus.

Trotes são rituais de passagem de ingresso na vida universitária e adulta. Foto: reprodução Centro Acadêmico de Jornalismo.
Nas ruas de paralelepípedo do centro histórico, a pegação nos trotes já ganhou status de tradição. Recorrendo ao conceito do historiador inglês Eric Hobsbawm, sobre uma “tradição inventada”: algo recente que, ao ser repetido com afeto, desejo e pertencimento, passa a parecer ancestral. A cada novo semestre, veteranos reencenam esse rito de passagem, em que o beijo, o corpo e a festa se tornam formas legítimas de recepção.
Para Tainara Anjos, estudante do 6º semestre de Ciências Sociais, esse é um dos momentos mais esperados da vida acadêmica no CAHL.
“É uma das poucas possibilidades de interação entre calouros e veteranos… É um momento de liberdade onde os prazeres são expostos na rua, quebrando com o conservadorismo que ainda existe na cidade e dentro do campus”, contou a graduanda Tainara Anjos.
Apesar do clima predominantemente casual, há quem leve pra casa mais do que somente boas lembranças. Alguns casos de relacionamento amoroso surgem a partir desses encontros, ainda que, em geral, o clima seja mais de flerte do que de compromisso. “Com certeza um trote é um ótimo lugar para gerar amizades e amores. Tem o meu caso particular que hoje eu estou em um relacionamento de dois anos com uma pessoa que eu conheci em um trote. Então eu acho que realmente essa interação na universidade entre pessoas é muito importante, é muito legal.”, disse Gabriela Souza, aluna do 6° semestre de Jornalismo.
A geração Z e a sexualidade reprimida
Em tempos de menos sexo entre a geração jovem que atualmente está ingressando na universidade, a UFRB vai contra isso nos atuais trotes? De acordo com a psicóloga Jean Twenge, autora do livro iGen, publicada pela editora nVersos no Brasil em 2018, os jovens da geração Z (1995 e 2010) estão fazendo menos sexo do que as gerações anteriores. Enquanto a geração X (1965 e 1980) teve, em média, 10 parceiros sexuais ao longo da vida, os famosos zoomers contabilizam pouco mais de cinco.
Enquanto os trotes do CAHL reafirmam uma celebração coletiva do desejo, a Geração Z, de modo geral, apresenta um panorama de retração sexual que legitima ainda mais o caráter excepcional desses eventos. Um estudo de Jean M. Twenge, Ryne A. Sherman e Brooke E. Wells, publicado em 2016 na revista científica Archives of Sexual Behavior, analisou dados da General Social Survey entre 1989 e 2014, e revelou que millennials e membros da geração Z apresentam uma taxa mais alta de inatividade sexual. Segundo a pesquisa, 15% dos jovens de 20 a 24 anos relataram não ter tido nenhum parceiro sexual desde que completaram 18 anos, enquanto apenas 6% da Geração X (1965 a 1980) relatou o mesmo.
Outra pesquisa publicada em 2020 na revista JAMA Network Open, conhecida por divulgar estudos nas áreas da saúde pública e comportamental, analisou a frequência e o número de parceiros sexuais entre adultos de 18 a 44 anos nos Estados Unidos, entre 2000 e 2018, e mostrou que a proporção de homens entre 18 e 24 anos que não tiveram nenhuma atividade sexual no último ano aumentou de aproximadamente 19% para 31%, indicando uma tendência geracional que vai além de fatores individuais, e que pode estar relacionada a transformações sociais, digitais e emocionais mais amplas.
Desde então, o fenômeno foi amplamente retratado como “recessão sexual” (sex recession), especialmente após a capa da The Atlantic em 2018, que destacou que o número de jovens sexualmente ativos havia despencado, quase um terço dos homens e um quinto das mulheres entre 18 e 24 anos ficaram sem sexo por um ano. O levantamento apontou fatores como o isolamento digital, o excesso de pornografia, redes sociais imersivas, ansiedade e solidão, apesar da maior liberdade sexual.Esses dados reforçam a leitura de que os trotes do CAHL, ao promoverem contato e desejo de forma aberta, representam um tipo de resistência diante da reconhecida “recessão sexual”, tornando-se espaços de vínculo em tempos de retração.
Enquanto parte da juventude atravessa um cenário marcado por retração afetiva, os trotes do CAHL em Cachoeira seguem na contramão. Eles reafirmam o papel da universidade pública não apenas como espaço de formação acadêmica, mas também como lugar de encontro, liberdade e experimentação. Nesse cenário, o desejo é celebrado, mas isso não significa ausência de responsabilidade. Consentimento, segurança e respeito são temas constantemente reforçados nas falas de veteranos organizadores. É o que destaca Carolina Silveira, aluna do 4º semestre de Jornalismo e atual coordenadora do Centro Acadêmico do curso, que organizou o trote do atual 3º semestre. Para ela, o clima de liberdade caminha lado a lado com o cuidado coletivo: “Eu já ouvi falar de casos de insistência para que alguém beijasse outra pessoa, e que eu saiba, não foi nada que a comunidade tenha se unido para se mobilizar, nem nada assim. Em alguns trotes as pessoas se preocupam mais com isso e sempre reforçam que ‘não é não’. Já aconteceu de alguém ir lá na frente, pegar o microfone e reforçar que não aceita assédio”, disse Silveira.

Foto: reprodução UFRB
Para reforçar o compromisso com o respeito e a segurança nas recepções, a UFRB mantém o Disque-Trote, um canal oficial de denúncias voltado para casos de abuso, constrangimento ou violência durante as atividades de recepção aos calouros. A plataforma, disponível no site da universidade, permite que qualquer estudante registre sua denúncia de forma anônima ou identificada, garantindo que situações de assédio ou práticas abusivas sejam investigadas e responsabilizadas.
Se, por um lado, a existência do Disque-Trote na UFRB aponta para a necessidade de enfrentar práticas abusivas, por outro, evidencia também um esforço coletivo em proteger o que há de mais simbólico nessa vivência: o direito de celebrar. Embora a criação do canal tenha surgido diante de um cenário nacional marcado por abusos e episódios graves, em uma busca aprofundada nos portais da UFRB e no repositório institucional, não foram encontradas evidências públicas, como relatórios ou registros online, que indiquem ocorrências de violência extrema nos trotes do CAHL em Cachoeira.

Momento do trote de Jornalismo no CAHL, em Cachoeira, gera expectativas nos novos estudantes. Foto: reprodução Centro Acadêmico de Jornalismo.
O Guia de Sobrevivência do Calouro, disponível no site oficial da UFRB, descreve o Disque-Trote como um canal seguro para denúncias de agressões físicas ou morais durante as recepções. Além disso, a Decisão Normativa nº 073/2006, que proíbe comentários abusivos e coação durante os trotes, vem sendo citada em comunicados da Pró-Reitoria de Políticas Afirmativas e Assistência Estudantil (PROPAAE) até 2019, reforçando que a universidade atua contra práticas abusivas desde então.
Em um Brasil onde a juventude é frequentemente estigmatizada, sobretudo quando exerce sua liberdade sexual, os trotes do CAHL se consolidam como uma expressão política de autonomia estudantil. Ao equilibrar desejo e responsabilidade, festa e cuidado mútuo, os estudantes reinventam semestre após semestre o que significa entrar na universidade pública no Recôncavo Baiano. Mais do que tradição, constroem um território de afeto entre os estudantes, escolha e pertencimento, onde a liberdade não é apenas defendida, mas vivida.
