Novas nomenclaturas de relacionamentos que estão sendo vivenciados atualmente geram debate para além dos conceitos de monogamia e não-monogamia
Gabriela Santos
Os modelos de relacionamento estão em constante debate na sociedade, desafiando normas tradicionais e abrindo espaço para novas formas de amar. Conceitos como monogamia e não-monogamia são os mais evidentes, e se tornam termos guarda-chuvas para novas nomenclaturas de relacionamentos que estão sendo vivenciados atualmente. Agamia, Neo-monogamia, Tolyiamor, Hipergamia feminina são alguns exemplos dessas relações.
A Geração Z – pessoas que nasceram, em média, entre 1997 e 2012, que atualmente têm 28 a 13 anos – está florescendo nesses debates, que não são atuais, e fazendo reformas e transformações nos modelos de amar.
Infográfico: Gabriela Santos
Em 2023, levantamento feito pelo IBGE, mostrou que o número de pessoas solteiras no Brasil (81 milhões), era superior ao de pessoas casadas (63 milhões). Esse número de pessoas que não estão em uma relação conjugal se dá pela falta de interesse em estabelecer uma relação romântica e familiar, o que reflete nos pensamentos e estilos de vida que os zoomers estão tendo. O nome para esse fenômeno é agamia, que vem do prefixo “a” (não ou sem) e do termo grego “gamos” (união íntima ou casamento).
Ilustração: Julia Jabur/CLAUDIA
Mitologia iorubá
Mas, afinal, como andam os relacionamentos modernos? O filósofo Renato Noguera, no livro “Por que Amamos? O que mitos e filosofia têm a dizer sobre o amor” discute questionamentos sobre o amor através de perspectivas filosóficas, orientais, africanas, e até mesmo biológicas sobre o amor.
O autor passeia por temas como amor platônico, apresentando o romance “Romeu de Julieta”, de Shakespeare; poliamor pela perspectiva da mitologia Iorubá, tratando do Itan de Xangô e suas três mulheres; e ciúmes pela psicanálise freudiana, de maneira a não trazer respostas “dadas” ao leitor sobre a temática, mas sim convidá-lo a novas reflexões e ao autoconhecimento. Esses questionamentos possuem respostas complexas e não absolutas, até porque há várias formas de explicar e viver o amor.
Livro Por que Amamos? O que mitos e filosofia têm a dizer sobre o amor (imagem da internet)
“A resposta à pergunta ‘por que amamos?’ é bem simples: nós amamos porque estamos vivos. A vida impõe a vontade de amar. O que nos cabe é encontrar uma boa história para essa aventura.” (Renato Nogueira)
Livros como “Descolonizando afetos”, da psicóloga, escritora e ativista indígena guaraní Geni Núñez têm muito apelo do público leitor e ajudam a amplificar a discussão sobre o tema. A obra faz um convite ao público a se questionar sobre a monogamia e desmistificar estigmas, apresentando conceitos e mitos sobre a não-monogamia, principalmente dentro de uma perspectiva indígena.
Geni pontua que a construção monogâmica é patriarcal, capitalista, cristã e que chegamos ao momento de rever tais pontos que influenciam grande parte da população a este tipo de relacionamento. Por meio de dados e contextualizações históricas, ela mostra que discussões sobre o tema são datadas desde as invasões às terras indígenas, em 1500, com os portugueses avistaram os primeiros povos originários. A não-monogamia está presente em diversas culturas como a indígena, contudo, o processo de catequização apagou identidades e impôs a cultura eurocêntrica ocidental.
O livro traz reflexões sobre como a monogamia está presente na sociedade não só por meio das relações afetivas-sexuais, mas também em aspectos mais amplos. A sua influência está desde proibições de múltiplos casamentos e datas comemorativas, como dia dos namorados.
A ativista e psicóloga Geni Núñez é autora de descolonizando afetos (foto: Karime Xavier)
“O jeito que amo não é importado, nem entalado,
vem sem manual, é artesanal e potável
É parte de uma teia, com gente humana,
gente bicho, vento, água e terra.
Amo ser e fazer parte, e sei: ser parte é infinito.” (Geni Núñez)
O que as pessoas pensam sobre isso?
Em uma enquete feita junto à comunidade discente do Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL), da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), obtivemos 29 respostas sobre a temática. A pesquisa teve respostas complexas sobretudo com o público feminino, pessoas monogâmicas, solteiras e praticantes de religiões de matrizes africanas ou simpatizantes.
A maior parte dos ouvidos ou se identificavam como monogâmicas ou não tinham resposta para a pergunta, respondendo com “não sei”, “tópico sensível” ou “ainda estava em descoberta”. As respostas sugerem a existência recorrente de questionamentos quanto às reconfigurações dessas formas de relacionamentos. Assim como grande parte afirma já ter se questionado quanto à forma de se relacionar, seja qual for a escolha ou não.
“Já sim! O que me leva a isso é perceber que, a cada novo relacionamento – seja ele amoroso ou não -, temos que entender que cada pessoa carrega uma história ou vivência e, ao se abrir para amar essa pessoa, temos que ter em mente que ela trará novas experiências e existirão discordâncias e temos que conciliar isso.” (Jonas*, 21)
Um levantamento feito pelo Google Trends, em 2023, apontou que o Brasil foi o terceiro país que mais buscou por temas relacionados à não-monogamia, com crescimento de 280% em relação ao ano anterior, ficando atrás apenas da Austrália e do Canadá. As principais perguntas sobre o tema, nos últimos 12 meses daquele ano, foram “O que é não-monogamia?”; “Como saber se sou não-monogamia?”; “O que é pansexual não-monogâmica?”; “O que é monogamia e não-monogamia?” e “Como aceitar um relacionamento não-monogâmico?”.
Algo em comum entre os participantes que responderam ao questionário foi a influência da religião quanto a forma de se relacionar. Ao serem perguntados sobre isso, maior parte afirmou que a religião influencia e molda essa decisão, e também apontado como maior problema devido a questões morais e doutrinas religiosas, como o cristianismo, que foi apontado como maior influenciador para relacionamentos monogâmicos e culpa das pessoas.
“Digo por experiência própria: Já fui de igreja evangélica e desde novos somos ensinados a reprimir nossa sexualidade em todos os âmbitos. Por exemplo, o sexo, deve ser feito para construir família, sem falar da homofobia. Saindo da igreja pude ter contato com pessoas que tem outras formas de se relacionar e conhecer e entender essas outras visões de mundo, que antes pra mim eram tão “erradas”. (Alex*, 25)
Relações bordadas à mão
Ana Carlos, 29 anos
Diversas sobreposições e acessórios constroem a imagem marcante de uma mulher recém-chegada no Recôncavo Baiano, que anda tranquilamente pela orla do Paraguaçu, observando cada detalhe da cidade. A pele branca com uma gama de tatuagens que marcam vários momentos de sua história junto aos piercings em seu rosto, mostram sua liberdade. Mas, por trás de sua composição, há uma mulher calma, decidida e introvertida que encontrou na liberdade a expressão de sua vida.
Ana Carlos (imagem de arquivo)
Mulher cis, lésbica, não-monogamica e artista comunicadora. É assim que Ana Paula Oliveira de Souza se descreve. De um interior para outro, entre muitas viagens e mudanças ao longo da vida, Ana carrega em sua bagagem muita inteligência, curiosidade e autenticidade. Aos 29 anos, Ana está no primeiro semestre do curso de Comunicação Social – Jornalismo, pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
Nascida na periferia de Montes Claros, Minas Gerais, cresceu rodeada pelos avós, primos, família paterna e se mudou para Goiás para morar com sua mãe. As locomoções trouxeram-lhe o gosto pela cultura e comunicação, que refletem em suas inquietações e autoconhecimento.
Seu grande sonho sempre foi ser inteligente. Quando pequena, mergulhava no mundo das palavras, do dicionário. Determinada e sem aceitar tudo de maneira dada, Ana Carlos cresceu fazendo seus “corre” o que resulta em suas diversas formações, sendo graduada em teologia, técnico em administração e bacharelado em design de moda. A moda, para Ana, é uma forma de existir e ferramenta para estar nos espaços e conseguir se movimentar e, junto à formação em comunicação, é onde mais expressa sua forma de ver o mundo.
“Quando a gente acredita, a gente pode escolher.”
E é acreditando e escolhendo que Ana entendeu que a não-monogamia deve ser algo definitivo em sua vida. Uma escolha ética, política e de liberdade, “mesmo com algumas dores, a delícia e complexidade de se entender”, como ela define não-monogamia. Aprendeu seus limites consigo mesma e impor isso dentro de suas relações, sejam afetivas-sexuais ou não, sobretudo, por que a não-monogamia não é apenas sobre relações afetivas-sexuais.
‘Responsabilidade afetiva’, ‘diálogo’, ‘escolha’, ‘limite’, são algumas das palavras-chave que fazem parte do vocabulário de Ana, que deixa claro que a não-monogamia não está atrelada à quantidade de relações e nem a ter, necessariamente, alguma relação. É algo direcionado a si, sua autonomia, e mostra que é mergulhando em si, em seus desejos, que estabelece suas relações, sem prisões ou exclusões, em comunidade, fortalecendo vínculos de forma igual, dentro das particularidades que cada ser humano carrega.
As relações que Ana têm são reais, plurais e sérias, assim como de muitas outras pessoas que escolhem viver seus afetos fora ou dentro dos padrões sociais. As relações são como artesanatos.
“[…] essa forma de se relacionar de mais comunidade e construção orgânica que vai mais para um bordado, vou tecendo assim as coisas e é isso. Aí tem relação que é um bordadinho, tem outro que é um fuxico, aí tem outro que é um tricô, então, aí a gente vai trabalhando as várias existências que habitam dentro com o outro, acho que é isso”
Bruna, 33 e Aguessi, 29
“Em um transbordamento de amor”, é como Bruna e Lara vivem no seu atual momento com a chegada de uma vida, fruto da parceria e afeto que compartilham. Entrelaçades pelo destino, pois, para quem tem fé, não há coincidência, a espiritualidade é o caminho guia dessa jornada emaranhada de encontros e chamegos.
Aguessi e Bruna estão felizes à espera de uma criança. Foto: imagem de arquivo.
Marcades por inúmeras mudanças que construíram quem são até o encruza-encontro das jornadas em conjunto. Bruna Curado Grilo é uma mulher de 33 anos, natural de São Paulo, mas saiu da cidade pelos estudos e rumou para o sul do país. No Rio Grande do Sul, passou a cursar Engenharia de Alimentos. Seguindo as trilhas de ideais, entendendo quem é, retorna a São Paulo por meio de um afeto, para fazer extensão em Direitos Humanos, Diversidade e Inclusão. Com família espalhada por vários estados do Brasil, Bruna criou vínculo com a Bahia junto a sua família, onde moram há 5 anos.
Lara Oliveira Toledo, Aguessi, é uma pessoa trans não-binária de 29 anos, nascide na Terra do Capar do Espírito Santo, tem descendência indígena Tupiniquim, é publicitárie e produtore. Em seus projetos busca trabalhar com a preservação de memória de comunidades indígenas, quilombolas e identidade. Seus movimentos fizeram elus se estabelecer em Ilhéus, sul da Bahia, através do amor, e da espiritualidade.
O que iniciou por um “match” virtual, trocas de mensagem pelo Instagram, tornou-se realidade por meio de uma despedida de uma amiga. Entre amigos e afetos em comum. A noite, que para alguns foi de ‘adeus’, para o casal foi troca e intimidade, um primeiro encontro cheio de afetividade.
A espiritualidade que segue fios ancestrais e invisíveis a olho nu, veio à tona por meio da natureza, das folhas, da terra e, assim, o caminho foi fincando o encontro entre Bruna e Aguessi, junto à trilha que realizam, oficializando o primeiro encontro. O terreiro de candomblé Ilê Axé Odé Omí Ewá também se tornou casa para vida espiritual, acolhimento e afeto do casal.
Bruna e Aguessi mostram que a não-monogamia é uma escolha política, ética e de liberdade mas que as relações também podem ser flexíveis e acordadas. O fechamento da relação, por exemplo, durante o período de resguardo de Lara, quando iniciade em Orixá, mostra o respeito com o momento sensível de uma pessoa mas que afeta duas partes da relação, e também com o espiritual. Elus mostram que a base na comunicação, respeito e parceria é fundamental para entender o que cada um quer e qual desejo querem viver.
Assim como morar juntos pode ser algo comum e determinante para casais em alguns tipos de relações, acordos em relacionamentos não-monogâmicos são pensados anualmente entre os parceires, prezando sempre pela manutenção e fortalecimento da relação da melhor forma.
A chegada de um neném é a semente de mais um afeto na vida do casal e de todos que vivem essa artesania afetiva.
O que você tem para partilhar?
As relações são complexas e amar requer um de coragem para se abrir para si e para o outro. Independente de escolhas, não há certo ou errado, há formas para que o amor permeie para quem o escolhe.
“Eu sou muito independente, em todos os sentidos. Isso sempre afasta quem tem medo ou atrai quem está perdido. De maneira geral, meu trabalho é o meu poder de domínio sobre a minha vida pode ser positiva ou negativa, a depender de quem quer estar comigo. Já senti a ingratidão de quem me sugou e depois não agradeceu pela grandiosidade que é estar ao meu lado. Ou senti a inveja de quem demorará a chegar aonde estou, pois falta repertório. Já fui lida como fria por conseguir manter o controle sobre os meus objetivos, eliminando tudo o que não me acrescenta, etc. Sinto que sou uma pessoa que não dá trabalho a ninguém. Mais sinto que as pessoas sabem que posso organizar e dar conta dos problemas delas. Elas me dão trabalho. Aí canso e vou embora. Preciso de liberdade, individualidade e manter a admiração, senão perco o tesão. As pessoas me cansam com suas questões…” (Maria*, 37)
“Como eu disse que era de igreja evangélica, quando tinha 16 anos, minha avó se juntou com uma mulher da igreja e quase arranjaram um casamento para mim, com o filho dessa mulher. Era uma família que tinha relevância na igreja e, vez ou outra, achavam uma menina na região para ser potencial noiva do filho. Assim, fui uma das escolhidas e nem me dei conta, a mãe da família levava a gente para alisar o cabelo, chegou a me dar creme para estria porque o filho dela não gostava. Nessa época nunca nem tinha beijado na boca ainda. Quando me dei conta que eles todos estavam planejando casar a gente, adolescentes, eu surtei, sai da igreja e cortei meu cabelo pela primeira vez. Alguns anos se passaram e percebi que acabei tendo o fim que minha família queria, tendo um relacionamento/casamento tão longo e bem jovem, até cogitei abrir o relacionamento, mas percebi que precisava mesmo terminar, tanto para descobrir a forma que gosto de me relacionar, tanto para explorar minha sexualidade inteiramente.” (Ben*, 25)
“Em um relacionamento, monogâmico falar sobre outra forma de relacionamento, o aberto, já se tornou motivo de crise dentro do relação, pelo fato da minha antiga companheira não ter muito conhecimento sobre a dinâmica do relacionamento aberto. Além da insegurança que possuía, não levou em conta os outros tipos de contratos que podem existir dentro da relação, sem influenciar nossos afetos, contando que as duas ou mais partes envolvidas estejam de acordo e mantendo uma troca saudável.” (Pérola*,18)
*Os nomes usados na apresentação da pesquisa e relatos são fictícios para preservação das fontes.







