Projeto que regulamenta pedagogia griô completa 10 anos no Congresso Nacional

Proposta da Lei Griô, para valorizar saberes tradicionais e ancestralidade, foi aprovada na Comissão de Cultura da Câmara e aguarda votação

Adrielle Alvim, Kailane Rodrigues e Raiane Santos

Na pedagogia Griô, “sentar em roda para ouvir uma história imbricada de sentido a partir da vivência” Cirando do brincar: valorizando a primeira infância. Reprodução: https://pedagogiagrio.com/escola/

O projeto de lei para regulamentar a Pedagogia Griô completou, em novembro de 2024, uma década de tramitação no Congresso Nacional e aguarda votação. Prática que associa a tradição oral com o ensino formal tem sido desenvolvida por meio de parcerias com pontos de cultura, ongs, associações, grupos culturais, escolas, universidades, institutos e centros de pesquisa. Esse modelo pedagógico enaltece os saberes e a identidade afro-brasileira. 

A fundadora da pedagogia, Líllian Pacheco, é educadora biocêntrica, idealizadora e coordenadora do Grãos de Luz e Griô, da Ação Griô Nacional, do Programa Ação Griô Nacional e da Escola de Políticas Culturais.  O objetivo foi criar uma pedagogia que representasse o universo da tradição, da ancestralidade, dos conhecimentos. “Não posso suportar uma aula que não tenha essa interação do conhecimento que foi sistematizado cientificamente, do conhecimento ancestral e oral”, afirmou a pedagoga. 

A pedagogia griô foi formada a partir das práticas pedagógicas desenvolvidas com crianças e jovens no Grãos de Luz e Griô, um ponto de cultura fundado em 2001 na cidade de Lençóis, localizada a 430 km de Salvador, Bahia. Uma das referências utilizadas é a metodologia de Paulo Freire , que busca valorizar a cultura e oralidade do aluno, e trabalhar com palavras próximas do seu cotidiano, para facilitar o entendimento. A educação biocêntrica, da professora Ruth Cavalcante, também é utilizada, por meio da valorização da  afetividade. As aulas de biodança criadas pelo antropólogo chileno Rolando Toro, também é são uma das referências da metodologia. 

Lílian Pacheco explica que, ao notar um abismo criado entre a rede de ensino tradicional e as pessoas mais velhas, se sentiu incomodada com a pouca valorização de outros conhecimentos nesses espaços. “Quando você vem com todo esse discurso acadêmico, o discurso da escola, é óbvio que os mais velhos e mais velhas vão dizer ‘mas eu não sei nada não minha filha, não sei de nada não. Não estudei.”

Sede do Grãos de Luz em Lençóis. Data indeterminada. Reprodução: Facebook Grãos de Luz e Griô

Como tudo começou

A volta para sua terra natal, na Chapada Diamantina, após anos residindo em Salvador, trouxe em Lilian e seu companheiro, Márcio Caires, a vontade de exaltar os saberes não tradicionais, das pessoas mais velhas que carregavam consigo grande fonte de conhecimento e que muitas vezes não se reconheciam como detentoras, por acreditarem que só o que vinha das escolas e universidades eram considerados conhecimentos.

Líllian Pacheco é educadora biocêntrica e fundadora da pedagogia Griô. Foto: Acervo pessoal

A criação de uma pedagogia que conseguisse interagir tanto com conhecimentos tradicionais e os não tradicionais abriria muitas portas para pessoas que até então não tinham noção do conhecimento que carregavam e da sua contribuição para a formação de outros conhecimentos.

Foto: Arte gráfica desenvolvida pelo grupo contendo linha do tempo da Pedagogia Griô. Fonte linha do tempo: https://pedagogiagrio.com/escola/ e Nação Griô: o parto mítico da identidade do povo 

Griô, mestre e aprendiz

O livro Nação Griô: o parto mítico da identidade do povo brasileiro, organizado e sistematizado por Líllian Pacheco e Márcio Caires,  explica que Griô é derivado da palavra Griot, de origem francesa, a partir da comunicação criada entre diversas línguas no mundo. A palavra foi criada para se referir a uma das formas utilizadas por famílias tradicionais no noroeste da África, precisamente na região do Mali. 

Essas pessoas são tidas como os guardiões das histórias e memórias de seu povo, utilizando a oralidade como forma de transmitir conhecimento. Nesse sentido, lá, os Griots, além de contadores de história, são músicos, genealogistas (profissional que estuda e documenta linhagens familiares, construindo árvores genealógicas), poetas populares que percorrem aldeia por aldeia aprendendo e ensinando a cultura para o seu povo. 

Na tradição africana, a saudação “I Dya Alulali!” (Faça tudo para sempre unir!), dita por Sundiata Keita, fundador do Império do Mali, a Bala Fasekê, deu origem à palavra “diéli”, que representa uma figura essencial na preservação da história.

De acordo com o livro Toques do Griô: Memórias sobre contadores de histórias africanas, de Heloisa Pires Lima e Leila Leite Hernandez, ele é responsável por garantir que as histórias de indivíduos, famílias, linhagens, clãs e nações nunca morram, circulando de geração em geração. Por essa razão, Bala Fasekê é reconhecido como o primeiro, e todos os posteriores são considerados seus descendentes. 

A palavra “griot” surgiu como uma adaptação da expressão “criado”, utilizada por portugueses e franceses, ao tentar traduzir esse título de autoridade e sabedoria. Márcio Caires, participante da criação do Projeto Grãos de Luz e Griô e co-criador da Pedagogia Griô, viajou para a África com o propósito de pedir permissão para abrasileirar o termo “griot”, transformando em “griô”, no ano de 2007. Durante o período, ele conviveu com as famílias que vivem a tradição oral.  Ouça abaixo a experiência do educador: 

De acordo com o projeto de lei N.º 1.786, de 2011, são considerados Griôs:

Foto: Arte gráfica desenvolvida pelo grupo contendo representação de Mestres Griôs. Reprodução das ilustrações, na ordem: Chris Hellier / Alamy Stock Photo; Joseph Abraham Levi; Wikipedia e Dave Kobrenski.

O processo para se tornar um Griô ou até mesmo mestre não é tão rápido e nem tem tempo fixo. Dentro da base de ensino da pedagogia, esse conhecimento é fundamentado de três formas: o Griô, que tem mais de 60 anos e é reconhecido pela comunidade; o Mestre Griô, que é mais jovem e precisa da bênção do griô para se tornar mestre (um processo que pode demorar anos); e o Griô aprendiz, responsável por transformar o conhecimento da tradição e facilitar essas vivências dentro das escolas. Com isso, ocorre essa mediação dos conhecimentos passados de Griô para mestre e de mestre para o aprendiz, que vai facilitar esses conhecimentos dentro das escolas de educação formal.

Foto: Arte gráfica desenvolvida pelo grupo contendo dados da Pedagogia Griô. 

Ivamar dos Santos, o mestre Griô Ivamar, é um ativista do movimento negro, ator e pesquisador. Nos anos 1970, morou em Angola por quatro anos trabalhando com jovens refugiados da África do Sul. Ele também esteve presente na Conferência de Durban, III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em 2001 na África do Sul. 

Em seguida, se dedicou ao trabalho com comunidades quilombolas em todo o Brasil, promovendo a cultura desses povos, especialmente o Marabaixo, uma manifestação cultural afrodescendente do Amapá, com dança, canto e percussão, no Sudeste. Ele acredita que essas ações o levaram a ser chamado de mestre. 

O ativista explica que, nos anos 1970, o conceito de griô já era compreendido no movimento negro e que já existiam práticas relacionadas a sentar e pisar no chão. 

“Ser mestre é uma prática do nosso povo, do povo preto. É respeito ao solo, respeito aos mais velhos. E não porque ele é mais velho, porque ele é uma escola. Não, ele tem o saber dele, ele está no processo de aprendizagem porque aprender é aprender o tempo todo. É uma troca”, ressaltou o mestre Griô Ivamar.

 Em 2023 ele também participou da novela Amor Perfeito, da Rede Globo, interpretando o personagem “Popó”, um griô que trabalha como concierge do hotel (um profissional que atende aos hóspedes, proporciona serviços personalizados e assistência para que a estadia seja agradável). 

Mestre Ivamar interpretando Popô na novela Amor Perfeito. Reprodução: Rede Globo 

“Minha didática é baseada na contação de histórias. Um dos projetos que eu desenvolvo é chamado Zumbi jogava Xadrez, onde compartilho um pouco da história de África, dos países pelos quais passei, e também falo sobre a origem dos quilombos”, disse o mestre. Através da história sobre Zumbi aprendendo a jogar xadrez, as crianças podem conhecer mais sobre o movimento negro contemporâneo.

Ouça o Mestre Ivamar   

Metodologia 

De acordo com o livro Nação Griô: o parto mítico da identidade do povo brasileiro, organizado e sistematizado por Líllian Pacheco e Márcio Caires, a Pedagogia Griô deve facilitar o encanto, a participação e a celebração da vida, por meio de práticas reconhecidas como didáticas e vivenciais: caminhadas, oficinas dos saberes, cortejos, rituais de cantos e danças, espaços de convivência e criação coletiva, ofícios artesanais, aulas espetáculo, círculos de cultura, encontros dialógicos, rodas da vida e das idades, rodas de prosa,  danças do trabalho, danças de celebração, bênçãos, rodas de contação de histórias de vida, mitos e causos, mutirões.

A vivência é um dos fundamentos da metodologia. Líllian Pacheco explicou que, em uma aula  de matemática, por exemplo, além dos alunos aprenderem as unidades de medidas, eles aprendem como aplicar na realidade econômica daquela comunidade. Ao associar o quilograma à produção de farinha de mandioca, o aluno é instigado também a refletir sobre as pessoas que fazem essa atividade e qual é o impacto social do ofício para o fortalecimento de vínculos e identidade do local. 

Uma tradição oral que tem passado de geração em geração e uma das formas de transmitir esses conhecimentos é por  meio das cantigas criadas em comunidade. A seguir, ouça um trecho de uma dessas canções que Márcio Caires aprendeu com a mestra griô mãe Rosa, da comunidade quilombola do Remanso.

Ouça aqui 

Para Alexandre Marques, professor de história e Griô Aprendiz do Rio de Janeiro, a oralidade é o pilar da pedagogia. “Por mais que nós escrevamos o que nós aprendíamos, nunca a escrita deu conta desse conhecimento. Nunca”, afirmou, em relação à preservação dos saberes dos mestres.  

A influência da educação biocêntrica reflete na valorização da vida, da afetividade e do respeito. Esses elementos podem ser manifestados de diferentes formas, como pela música e pelo cordel. Nesses dois casos, as letras e ritmo, associados com a dança, ajudam a criar conexão entre os participantes. “Como professor, eu não acredito que só a educação transforma as vidas das pessoas. Eu não acredito que  ela forma e formata as pessoas. O que transforma a vida das pessoas é a cultura, é o contato com o outro, com o diferente, com a ancestralidade”, disse Alexandre.

Clique aqui e ouça Lilian falando sobre a metodologia Griô 

O curso de formação Pedagogia Griô é realizado de forma presencial (neste ano em Brasília, Goiânia, Ilhéus, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Salvador) e virtual. O programa tem carga horária de aproximadamente 200 horas, divididas em 14 meses. Há também a produção partilhada das Práticas Pedagógicas e um Encontro Nacional. 

Para saber mais sobre a metodologia, histórias e práticas da Pedagogia Griô, clique aqui.

Influência da pedagogia na vida dos praticantes

Além de trabalhar com conhecimentos tradicionais por meio da oralidade, a Pedagogia Griô marca a vida de quem participa do Grãos de Luz e Griô. Seu público-alvo são jovens, educadores (de maioria feminina) do ensino público, famílias de baixa renda e mestres griôs da tradição oral. A maioria deles pertence a comunidades quilombolas, rurais e periféricas.

Na instituição, eles trabalham com educação sustentável, arte, cultura, identidade e ancestralidade. As vivências em rodas, como forma de absorver o conhecimento, as oficinas de arte, música e audiovisual, são utilizadas para valorizar a tradição oral. A troca de conhecimentos nesse espaço fez com que muitos jovens questionassem com maior curiosidade e atenção o lugar de onde vieram e reconhecessem ainda mais os saberes de seus mais velhos.

Michelle Nascimento, mulher negra e jovem grãozinha, entrou na instituição em  2016, e desde então esteve em contato com as práticas da pedagogia griô. Ela já fez parte das oficinas de música, mas o audiovisual chamou sua atenção, uma das áreas que atualmente trabalha. A lençoense conta como o ponto de cultura a fez valorizar suas raízes a partir das lentes das câmeras: “ Pensar que a gente pode fazer um material pedagógico sobre nós. Por que não aprender sobre nós, né? A gente tá sempre criando materiais que são tão distintos da gente.”

Ela está frequentemente em contato com outras comunidades e utilizando a experiência das vivências para produzir materiais.

“Isso também facilita o processo da aprendizagem, a gente fortalecer nossa história desde já e não estar nos distanciando, aí por isso que a gente demora tanto para saber sobre nós, porque não existe uma pedagogia para nos aproximar disso. Aí a pedagogia griô é uma metodologia que também contribui nesse sentido”, ressaltou Michelle Nascimento.

Atualmente com 25 anos, Michelle é a presidente do Grãos de Luz e Griô, mas fora da instituição, também dá aulas. Ela é formada em pedagogia pela Unopar na cidade de Seabra – BA, a 464,7 km de Salvador e ensina em duas escolas particulares em Lençóis. A pedagoga compartilhou a dificuldade que teve no começo para lecionar e administrar a metodologia do ensino formal e do ensino griô. “Eu fui fazendo meu caminho assim, muito griô, aquele que deu certo comigo que foi a roda, então eu comecei a fazer a roda com os meninos e falei “pô véi, isso aqui dá certo”.

Não só Michelle, mas vários jovens que passaram pela instituição tiveram suas vidas marcadas de algum modo pela pedagogia griô. Uilami Dejan, conhecido como Jan, de 28 anos, é produtor cultural, fotógrafo e professor de história, formado pela Unopar. Ele começou no Grãos de Luz na adolescência, como aluno. Depois se tornou facilitador de oficinas audiovisuais e professor das aulas preparatórias para o  ENEM. Atualmente, é representante político institucional do Grãos e diretor da promoção de Igualdade Racial de Lençóis, tendo conseguido aprovar leis importantes para a população negra.

Uilami Dejan, o Jan, é produtor cultural, fotógrafo e professor de história. Foto: Acervo Pessoal

Jan acredita que a pedagogia foi essencial no processo de se conectar com as suas raízes e buscar entender quem era, reflexão que antes não tinha. “Ainda mais quando você traz uma ancestralidade que sempre foi descriminalizada, traz uma ancestralidade que é negra, quilombola. Aqui eu consegui ter outra visão e fazer outro caminho”, completou.  

“O objetivo era colocar o máximo de jovens dentro da universidade”, aponta Jamile Santos, de 25 anos e jovem grãozinha, que recebeu orientação na inscrição, na escolha do curso e na identificação da melhor opção para ingressar no ensino superior. Ela destaca a importância dessa ajuda, pois, durante a transição da escola para o ensino superior, conseguiu entender melhor o que é o vestibular e o que é a universidade. Além disso, ela recebia uma bolsa de incentivo por participar das atividades e manter o compromisso com os estudos.

Quando foi aprovada para o curso de História na UFRB, o Grãos continuou a apoiar com auxílio financeiro, ajudando a lidar com os desafios depois da aprovação. “Não basta só você fazer a prova, ter acesso ao estudo, fazer a prova, mas também tem o pós, né? Fez a prova, passou e agora, né? Vai morar em um lugar muito distante da sua cidade, onde vai morar, com quem vai morar, o que é que vai comer.” A bolsa continuou até ela conseguir a bolsa da universidade, momento em que o apoio foi repassado para outro jovem.

Michele, Jan e Jamile são três dos muitos jovens lençoenses que fizeram parte do processo de criação da pedagogia griô. Um exemplo de como essas práticas eram exercidas pelos jovens é através das aulas espetáculos que eram produzidos semestralmente e buscavam pautar temáticas ainda pouco discutidas e desconhecidas pela comunidade como racismo, identidade e ancestralidade. As apresentações eram feitas em pontos específicos da cidade e contavam com um público expressivo que iam prestigiar as aulas em forma de apresentações teatrais, musicais e audiovisuais.

Confira um trecho da apresentação: Aula espetáculo “queremos enegrecer os currículos”  

Jamile lembra com carinho das aulas-espetáculo e também da banda do Grãos, que sempre envolviam muita correria e tensão, mas também uma grande satisfação ao final, especialmente pelas apresentações nos palcos de Lençóis. Ela deu continuidade ao movimento artístico iniciado na instituição e, atualmente, faz parte de um trio chamado Triêtu, no qual todos os integrantes foram participantes do Grãos de Luz.

Junto a André Fonseca e Tainã Pacheco, o trio iniciou sua trajetória interpretando músicas de outros artistas e compartilhando nas redes sociais. Um dos vídeos alcançou 579 mil visualizações. Com o sucesso, o grupo lançou recentemente o EP, intitulado “Triêtu Parte I”, com músicas autorais.

Foto: Reprodução/ Instagram ( https://www.instagram.com/p/DBexbkgxvzj/)  

Ouça De Volta às raízes- Triêtu 

A proposta da Lei Griô Nacional

Entre as principais medidas, está a criação de um Registro Nacional Griô para identificar mestres, griôs e aprendizes. Os requerimentos de inscrição, formulados pelas partes, serão encaminhados à Comissão Nacional Griô, uma outra proposta de criação prevista no projeto de lei, que será responsável pela aprovação dos registros. 

Além disso, a lei busca implementar mecanismos de sustentabilidade para essas práticas culturais, incluindo o oferecimento de bolsas de auxílio financeiro a griôs e aprendizes.

A minuta da Lei Griô foi definida como prioridade na Política Nacional de Cultura durante a Conferência Nacional de Cultura, realizada em Brasília em março de 2010, com a participação de mais de 2 mil pessoas. Reprodução:https://www.leigrionacional.org.br/ 

Em relação a isso, Lilian expõe as dificuldades enfrentadas na luta pela aprovação da Lei Griô Nacional, apontando tensões políticas. Ela explica que a proposta original da regulamentação foi desfigurada por uma disputa de autoria.

Foto: Arte gráfica desenvolvida pelo grupo contendo histórico da Lei Griô. 

Na época, os projetos de lei nº 1.176/2011, pelo deputado Edson Santos (PT), que “Institui o Programa de Proteção e Promoção dos Mestres e Mestras dos Saberes e Fazeres das Culturas Populares”, e o nº 1.786/2011, pela deputada Jandira Feghali (PCdoB), que “Institui a Política Nacional Griô, para proteção e fomento à transmissão dos saberes e fazeres de tradição oral”, avançaram com a apresentação de um texto unificado, no qual o relator da Comissão de Cultura, deputado Evandro Milhomen (PDT), propôs um substitutivo.

Cerca de 12 emendas foram apresentadas ao texto pelos deputados Alice Portugal (PCdoB) e Paulo Ferreira (PT), mas a maioria foi rejeitada sob alegação de questões técnicas, exclusão de elementos fundamentais ou repetição de disposições já superadas. 

Entre as mudanças propostas por Milhomen, a garantia de bolsa vitalícia para os mestres foi rejeitada e substituída por uma bolsa temporária, além do valor ser ajustado para ser equivalente ao de mestrandos (R$ 3.120,00), em vez de doutorandos (R$ 5.520,00). Segundo o relator, o objetivo é ampliar o número de beneficiários, equiparando o Mestre reconhecido pelo conhecimento tradicional ao Mestre com conhecimento acadêmico.

Uilami Dejan, diretor de Promoção da Igualdade Racial da cidade de Lençóis e representante político institucional do Grãos de Luz e Griô, destaca que, para se tornar mestre acadêmico, é necessário menos tempo de estudo/vivência do que para um mestre da tradição oral e que há uma hierarquização dos saberes.

“Você colocar esse saber acadêmico, como a ciência, o saber certo e o nosso saber ancestral é um saber que é coisa da minha avó. Não dá o mesmo valor”, disse Uilami Dejan.

O uso do termo “Mestre Griô” foi descartado com alegações de que o termo “Mestre” é mais amplo e representativo, e que tem sido utilizado em pesquisas, políticas públicas e legislações estaduais e municipais, incluindo Babalorixás, Pajés e outros detentores de saberes tradicionais.

Hoje, a lei está em processo de construção novamente no Congresso, com a educadora observando que, apesar de os conflitos passados, ela e outros membros da comissão não querem mais “entrar nesse nível de tensão”. Ela conclui que o foco agora é na colaboração e na representatividade, sem alimentar mais divisões.

Integração entre conhecimentos acadêmicos e tradições orais

O site da Pedagogia Griô oferece uma biblioteca virtual, onde estão disponíveis livros, artigos, revistas e pesquisas acadêmicas que aprofundam o conhecimento sobre o tema. Segundo Lilian Pacheco, a temática já motivou a produção de mais de 300 trabalhos acadêmicos registrados.

Entre alguns dos trabalhos realizados, Uéverne Silva, estudante da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), em seu estudo Griô e Oralidade Yorubá, destaca como a oralidade e a escuta, tratadas como atos de liberdade, se tornam ferramentas de empoderamento, especialmente em comunidades como Oyo, na Nigéria. “Minha mãe me ensinou isso, meus avós têm o costume de contar histórias que viveram”, exemplificou. Para ele, a tradição, profundamente enraizada na cultura Yorubá, reflete a essência do griot.

Ayara Souza, mestranda em comunicação na UFRB e autora da cartilha Identidade e Ancestralidade: aplicação da Lei 10639/2003 à luz das práticas Griô explica que o produto foi influenciado pela sua formação em Pedagogia e pelo contato com a Pedagogia Griô, além das experiências pessoais vividas em sua família, que tem um histórico de respeitar e reverenciar os mais velhos.  

Ayara Souza desenvolve pesquisa de dissertação sobre o assunto na UFRB. Foto: Acervo Pessoal

A partir disso, ela sentiu uma lacuna na educação formal em abordar esses temas, mesmo com a existência da lei 10639/2003, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. “Eu fiz uma pesquisa em uma escola em Cachoeira e aí foi constatado que os professores resistiam em trabalhar o tema, não buscavam. Também não tinha incentivo por parte da escola em formar esses professores e oferecer uma formação contínua para atualizá-los com relação à lei”, concluiu Ayara.

Por outro lado, o debate sobre o papel da academia na abordagem desses conhecimentos levanta questões importantes. Mestre Ivamar dos Santos chama a atenção para o cuidado necessário ao pesquisar saberes ancestrais, especialmente em territórios sagrados como os quilombos. Ele critica a forma como, muitas vezes, o protagonismo das pessoas locais é desconsiderado. “A academia tem um papel interessante porque fortalece a história, mas a forma como é feita precisa de cuidado. Como você entra nos quilombos, que são terras sagradas?”, questionou.

Ivamar também destaca que o conhecimento não pode ser reduzido ao que está registrado nos livros acadêmicos. “Tem muita gente que está o tempo todo dentro da academia e depois vem para cá achando que traz todos os saberes, porque está tudo escrito. Não, tem coisas que você precisa escutar, receber, respeitar e entender.”

Pedagogia Griô gera turismo comunitário 

Trilhas Griôs. Reprodução: Acesse a foto original 

A Trilha Griô, parte da Pedagogia Griô, é uma experiência de turismo comunitário realizada na Chapada Diamantina, uma região de serras, localizada no centro do estado da Bahia, que a cidade de Lençóis pertence. Ao participar, os visitantes são recebidos pela comunidade e tem uma imersão nas tradições locais, como danças e histórias contadas pelos mestres. A receita gerada pela trilha é revertida para as famílias e comunidades envolvidas. 

Delvan Dias, líder quilombola, capoeirista e pedagogo, revela que, no início, a comunidade não reconhecia o valor de seus saberes, mas com o tempo o turismo comunitário ajudou a fortalecer a identidade tanto dos visitantes quanto dos moradores. 

“A pessoa que vive na cidade que está longe dessa interação com a natureza, muitas vezes vê o valor da pessoa fazer uma armadilha de pesca e ir lá pegar seu próprio peixe em vez de comprar no mercado. Ou de plantar seu próprio alimento, ou de fazer sua própria farinha, de fazer seu próprio remédio, de não ir para a farmácia. A galera do quilombo não enxerga que isso é uma liberdade”, afirmou Delvan Dias, líder quilombola, capoeirista e pedagogo.

Por isso, a experiência envolve a organização de oficinas para a transmissão de saberes comunitários, como a oficina do “maio”, uma rede de pesca utilizada para capturar peixes nas margens do rio. O visitante aprende a fazer a rede manualmente, nó por nó, como era feito antigamente.

Além disso, são oferecidas mais três oficinas: a de “muzuá”, uma armadilha de cipó também usada para pesca; a oficina de farinha, onde os participantes aprendem a fazer farinha de mandioca desde a colheita; e a oficina de xarope com a erveira Vó Judite, que compartilha seus conhecimentos sobre as propriedades de cada erva.

A ideia é criar uma conexão verdadeira entre o visitante e a comunidade, além de oferecer uma vivência mais rica do que apenas ouvir histórias ou ver atrações.

Ouça um trecho de Nego D´Água, uma mistura de mito e realidade contada por Delvan sobre as histórias de pescador do seu avô.

Clique aqui e veja também como a música e a ação são conciliadas nesses fazeres da comunidade.  

Experiência envolve a organização de oficinas para a transmissão de saberes comunitários. Foto: Uilami Dejan/ Trilhas Griô

“A gente, enquanto comunidade, tenta fazer com que isso seja frequente, regular, porque realmente fazer isso uma vez a cada três meses não gera renda. Então a ideia dessa forma de trabalhar o turismo precisa de ter maior frequência”, apontou Delvan Dias. 

A trilha Griô faz com que as pessoas da comunidade reconheçam os saberes praticados e passados em suas rotinas diárias que até então não acreditavam ter valor significativo a ponto de pessoas de outros lugares, inclusive de outros países, pagarem para aprender com eles.

O reconhecimento da tradição oral e não formal, a valorização de saberes passados entre famílias, de geração em geração, do chá da avó, das histórias dos mais velhos, sentar em roda para escutar, de descobrir que ali também existiam mestres e mestras, tudo que parecia comum e banal para os habitantes da comunidade quilombola do Remanso, foi totalmente mudado com a inserção do turismo comunitário. Ele não só ajudou financeiramente, mas também contribuiu para o reconhecimento desse saber ancestral e identitário pelos próprios moradores.

 Entenda como o turismo comunitário funciona