Projeto vivências e memórias intensifica ações do Samba do Machucador em Cruz das Almas

Grupo criado há 22 anos ganhou edital e realizou oficinas culturais para conectar tradição e juventude

Mara Layne 

  Apresentação do grupo na Casa da Cultura em Cruz das Almas. Foto: Acervo “Samba do Machucador”

O grupo Samba do Machucador, de Cruz das Almas, completou 22 anos de história e vem reforçando seu compromisso com a preservação da cultura popular. A nova iniciativa, intitulada “Samba do Machucador: Vivências, História e Memória”, buscou fortalecer as raízes do samba de roda e engajar novas gerações por meio de oficinas de percussão, música, samba de roda e confecção de turbantes.

O projeto, que resgata saberes ancestrais, foi realizado com apoio do Governo do Estado da Bahia, por meio do Edital Lia da Silveira, da Lei Paulo Gustavo, que investiu na iniciativa. Reconhecido pela criatividade em transformar o utensílio doméstico machucador – tradicionalmente usado na culinária – em instrumento musical, o grupo leva adiante uma tradição carregada de simbolismo e resistência cultural.

Desde o lançamento em abril de 2024, na Associação Pestalozzi, o projeto se expandiu para escolas e associações de Cruz das Almas. Jovens e adultos participaram das oficinas, que buscaram não apenas preservar o samba de roda, mas também promover um espaço de aprendizado e  conexão com a história afro-brasileira do Recôncavo Baiano.

 “Esse projeto é mais um das várias iniciativas do grupo, buscamos fazer oficinas nas unidades escolares para envolver os mais jovens”, destacou a atual líder do grupo, Telma Carvalho, filha da sambista Madalena Carolina de Jesus, conhecida como Dona Madalena, de 94 anos. Sob a coordenação de Telma, o projeto reforçou a importância do legado ancestral como uma ferramenta de transformação social e valorização da cultura negra.

Oficina de Turbante no lançamento do projeto em abril de 2024. Foto: Acervo “Samba do Machucador”

Raízes e Ancestralidade  

O Samba do Machucador é formado por uma diversidade de gerações, com idosas, jovens mulheres e crianças, todas unidas pela herança cultural que define sua essência. Majoritariamente composto por mulheres negras e membros da comunidade local, o grupo carrega a força das trabalhadoras descendentes de pessoas escravizadas, que transformaram o som dos machucadores – outrora ecoando nos armazéns de fumo e cozinhas das fazendas – em uma expressão de resistência e arte.

Essas mulheres, apesar das adversidades, encontraram no samba uma maneira de suavizar as durezas do cotidiano.

“Por conhecer as lutas diárias dessas mulheres e homens, seus trabalhos, seja em armazéns, em casas de fazendeiros ou mesmo pelos trabalhos árduos nas senzalas — muitos ligados ao uso de pilões de madeira —, idealizei o nome ‘Samba do Machucador’. Esse nome veio para mim em um sonho”, afirmou Telma Carvalho.

Assim, nasceu o Samba do Machucador, carregado de simbolismo e marcado pelo refrão popular:

“Minha mãe me deu de machucador, eu não sou pimenta, minha mãe me machucou. ”  

Machucador. Foto: Acervo “Samba do Machucador”

Hoje, o grupo representa não apenas uma tradição, mas também um espaço intergeracional de aprendizado e celebração, onde crianças, jovens e idosas mantêm viva a força de uma cultura que transcende o tempo.

Dona Madalena: Mestre do Samba 

Madalena Carolina de Jesus, mulher negra, sambista e líder do grupo, é uma verdadeira guardiã do samba de roda. Aos 94 anos, carrega no sangue e na memória a força de uma tradição que atravessa gerações. Desde jovem, enquanto trabalhava nas casas de fumo, encontrava no samba não apenas um momento de respiro, mas também uma poderosa forma de resistência.

Pouco a pouco, Madalena começou a transmitir essa paixão às filhas, netas e até às crianças das famílias vizinhas, cujas mães confiavam nela para compartilhar o saber ancestral. Assim, garantiu que o samba de roda permanecesse vivo como um legado familiar e comunitário, fortalecendo os laços culturais e a identidade da comunidade local.

Madalena Carolina de Jesus, conhecida como Dona Madalena, é uma guardiã da roda de samba. Foto: Acervo “Samba do Machucador”

Para Madalena, o samba de roda transcende a definição de manifestação cultural: é uma ferramenta de transformação social, capaz de unir e fortalecer comunidades. Em uma entrevista concedida à TVE há dois anos, ela destacou a importância de preservar esse patrimônio imaterial:

“Samba é cultura, samba é lazer. Pelo amor de Deus, não deixe o samba morrer!”, destacou Dona Madalena.

A frase, carregada de emoção, sintetiza o compromisso que a mestre assumiu ao longo de sua vida: garantir que o samba permaneça como símbolo de resistência e celebração.

Junto com sua filha, Telma Carvalho, Madalena idealizou o grupo Samba do Machucador como um espaço de alívio frente às dificuldades do trabalho árduo e de promoção da união comunitária. Para elas, o samba é mais do que música e dança: é um espaço de pertencimento e identidade. Cada roda formada se transforma em um palco vivo onde as histórias dos ancestrais, as dores e as alegrias da comunidade são contadas e celebradas, reafirmando a força e a resiliência do povo negro.

Liderança de Telma Carvalho  

Telma Carvalho de Jesus Braga, filha da mestra Dona Madalena, é uma das principais lideranças na preservação do Samba do Machucador em Cruz das Almas, uma tradição profundamente enraizada na ancestralidade afro-brasileira. Sua atuação vai além da coordenação de eventos culturais, refletindo um compromisso com a preservação da memória histórica, a resistência cultural e a valorização da identidade coletiva da comunidade. Telma já foi reconhecida com o Prêmio de Trajetória Cultural pelo Estado da Bahia, destacando-se por seu trabalho na preservação de bens imateriais do Recôncavo, como os Presépios Dramatizados, os Ternos de Reis e o Samba Mirim.

Telma Carvalho é a atual líder do grupo. Foto: Acervo “Samba do Machucador”

A atual líder destaca a importância de preservar a memória histórica e as tradições culturais, enxergando nelas um legado essencial para as futuras gerações.

“Preservar as memórias e reconhecer as histórias, tradições e lutas dos nossos antepassados é fundamental para transmitir esse legado e valorizar nossa ancestralidade”, afirmou Telma Carvalho.

Sua visão reflete um esforço contínuo para garantir que o samba seja mais do que uma expressão artística: um símbolo de resistência e fortalecimento cultural.

A continuidade das tradições é outro ponto central em sua liderança. “Manter vivas as tradições culturais e respeitar os saberes ancestrais é essencial para sustentar a identidade do povo de Cruz das Almas”, ressaltou. Além disso, Telma Carvalho aposta na criação de projetos comunitários como uma ferramenta de transformação social. “O projeto fortalece os laços entre as pessoas, permitindo que os coletivos unam forças e desenvolvam estratégias para melhorias nas comunidades”, explicou. Dessa forma, sua liderança vai além da celebração cultural, utilizando a tradição como um instrumento para promover mudanças sociais e fortalecer a coesão comunitária.

Reconhecimento Cultural  

Em 2021, o Samba do Machucador foi oficialmente reconhecido como patrimônio cultural e imaterial de Cruz das Almas por meio da Lei Municipal nº 2820, e, no ano seguinte, recebeu o título de patrimônio público. Esses reconhecimentos reforçam a importância do grupo como guardião das tradições do Recôncavo Baiano e como símbolo de resistência e identidade cultural.

Telma Carvalho comemora essas conquistas como um marco na valorização da cultura local. “O título de Patrimônio Cultural e Imaterial, assim como o título de Utilidade Pública, representa um importante reconhecimento e um fortalecimento para que continuemos a resistir”, afirmou.

O coletivo tem se destacado em apresentações realizadas dentro e fora do município, levando sua tradição cultural para diferentes públicos e conectando novas gerações ao patrimônio imaterial do Recôncavo Baiano. As atividades reforçam o papel do Samba do Machucador como um símbolo vivo da herança cultural local, ao mesmo tempo em que dialoga com expressões artísticas contemporâneas.

Preservando a Tradição  

Atualmente, o grupo realiza apresentações que unem canto, dança e percussão, inspiradas nas festas populares da zona rural. Segundo o tocador do grupo Samba do Machucador, Jaylson Araújo dos Santos, preservar essa tradição é fundamental para manter viva a identidade cultural do Recôncavo Baiano e do Brasil como um todo.

      Jaylson Araújo. Foto: Acervo “Samba do Machucador”

“Na verdade, o Samba de Roda é mais uma das manifestações, né,  que preserva a cultura afro-brasileira. Ela retrata principalmente a forma do trabalho, a lida do dia a dia do povo negro, na sua labuta diária”, explicou Jaylson. Ele relembra que o samba nasceu no Recôncavo Baiano, onde, inicialmente, os negros usavam ferramentas de trabalho como instrumentos musicais. O canto e a dança, segundo Jaylson, eram formas de aliviar o peso do cotidiano, transformando o esforço físico em momentos de alegria.

 “Pois o Samba de Roda nasceu no Recôncavo, e no seu início era utilizado através das ferramentas de trabalho dos próprios negros, para poder cantar e tocar, fazer de uma forma mais alegre, porque o povo negro é muito alegre. Diminuía, na verdade, os impactos do trabalho, se divertindo e trabalhando ao mesmo tempo”, disse Jaylson Araújo.

Ele destaca os desafios enfrentados atualmente para preservar o Samba de Roda como herança cultural. Segundo ele, a tradição tem perdido força ao longo dos anos, especialmente com a diminuição das rodas de samba nas zonas rurais. “Antigamente os sambas eram muito fortes nas zonas rurais, mas hoje muito pouco se vê do que era o passado. Principalmente porque o samba de roda, além da lida no dia a dia do trabalho, era mais forte no momento de setembro, quando aconteciam os carurus. As pessoas abriam as portas e viravam noites tocando. Só que, com a violência, as pessoas pararam de confiar e de abrir suas portas, e a tradição, que era passada de forma hereditária, foi se acabando”, explicou.

Por meio de seu projeto, o Samba do Machucador busca não apenas resgatar, mas fortalecer essa tradição, mantendo-a viva e relevante. A cada batida do machucador, o grupo revive não apenas uma manifestação cultural, mas também as histórias de luta, resiliência e orgulho que formam o alicerce da identidade do Recôncavo Baiano. Assim, o grupo segue sendo uma referência de resistência cultural e um símbolo do legado ancestral da região. 

Samba de Roda no lançamento do projeto em abril de 2024. Foto: Acervo “Samba do Machucador”

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