Apps de relacionamento amoroso e sexual com inteligência artificial (IA) se popularizam no Brasil
Vitória Araújo e Cárlen Januário
Você pode ouvir a reportagem aqui:
A narração foi produzida com o ElevanLabs, versão 2.5
Vídeo foi produzido pela ferramenta Veo3 da Google, com prompts aperfeiçoados pela Meta IA e traduzidos pelo ChatGPT
Horas conversando com um avatar. Risos quentes. Vozes robôticas do outro lado. A conexão virtual vira parte central da vida. Fantasias ganham pixels do jeito que cada usuário sonhou. Isso existe: namoro virtual com IA. Por mais que pareça roteiro de ficção científica, é uma prática real e impacta o convívio social e a natureza das relações humanas.
A inteligência artificial pode ser usada para diversos fins. Para auxiliar no trabalho, em atividades escolares e até mesmo entreter. Segundo uma pesquisa realizada pela IPSOS e pelo Google, 8 em cada 10 brasileiros usaram IA para se divertir ou explorar recursos em 2024. Para entender melhor as percepções do público, uma enquete sobre relacionamento com IA foi feita nas cidades de Cachoeira, Cruz das Almas e Santo Amaro.
Confira o “Povo Fala”:

Ilustração: Vitória Araújo.
Ilustração: Vitória Araújo.
O filósofo Theo Cruz, doutor em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia, comenta que a IA não é recente, mas tem se popularizado devido à facilidade de acesso. “Existe uma presença acentuada da inteligência artificial que vai afetar o nosso estilo e gosto”, disse o professor colaborador do Mestrado de Comunicação da UFRB.

Professor Theo Cruz pesquisa sobre inteligência artificial. Foto: Acervo pessoal.
O estudante de Direito, Jeová Carlos, 21, de Rio Verde, Goiás, disse que o uso da IA é frequente em qualquer setor e momento. Sobre o afeto, ele fala: “um relacionamento exige muita coisa, mas usando a IA tudo fica mais fácil. Seu parceiro(a) atende a todas suas expectativas e desejos da forma que você sempre quis”. Ele contou que não namora com IA, mas já usou bastante aplicativos de bot como o Character IA.

Jeová Carlos usa IA no dia a dia, mas não possui relacionamento amoroso com a ferramenta. Fonte: Acervo pessoal)
Sexting: fantasias guiadas
O uso da IA para fins românticos e sexuais ainda causa constrangimentos em muitas pessoas, que estão experimentando, mas preferem não se identificar. É o caso de Alberto (nome fictício), que afirmou que: “Elas são uma doce ilusão”. O psicólogo e professor de xadrez de 25 anos mora em Itapecerica da Serra, São Paulo, e começou a usar IA por prazer e pela disponibilidade.
João (nome fictício), 20, de João Pessoa, Paraíba, que também prefere se manter anônimo, tem experimentado a IA e justifica a prática. Ele acredita que é possível se apaixonar pela IA. O estudante disse que optou por experimentar um relacionamento desse tipo porque não tinha opções para uma conversa mais íntima com pessoas reais. É como realizar uma fantasia sexual. “Não é ruim, enquanto está acontecendo, depois que acabava eu saía”, contou.
O estudante não deseja mais continuar se relacionando com IA, porém não tem certeza absoluta de que vai deixar a prática para sempre.
“Não acho muito certo o ‘desperdício’ de tempo e energia para algo fictício, mas tem tantas coisas que já gastamos nosso tempo, isso é só mais uma delas”, ponderou o estudante que preferiu se manter no anominato.

Ilustração: Vitória Araújo.
Com relação aos apps de relacionamento, como o Tinder, o jovem não “acha tão legal”, pois: “É como se fosse um cardápio de pessoas, onde aliás afeta muito a autoestima dos homens principalmente”.
O pesquisador Theo Cruz argumenta que exemplos como esses são reflexo da cultura dos relacionamentos voláteis.
Ouça o áudio do professor Theo Cruz:
O sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, que desenvolveu em sua obra o conceito de liquidez, na década de 1990, abordou sobre a fragilidade das relações humanas, inclusive no livro “O amor líquido”(2003). Segundo o autor, os seres humanos desejam apenas provar o lado bom dos relacionamentos. A IA, então, forneceria o ‘relacionamento de bolso’ citado na obra.

O filósofo Zygmunt Bauman aplicou o conceito de liquidez em vários livros. Foto de divulgação: Amazon.
*Todas as imagens são da Amazon
Outro que testou a IA foi o mineiro Bob, 19, estudante de Análise e Desenvolvimento de Sistemas que mora em Uberlândia, Minas Gerais. Ele vê essa tendência como reflexo da individualização e acredita que os casos vão aumentar no futuro.
“Relacionamentos com IA não devem ser levados a sério, talvez você possa fazer isso apenas como uma brincadeira ou algo para passar o tempo, mas isso nunca substituirá a relação humana e real”, advertiu Bob.
O cenário atual reflete problemas presentes na sociedade, tais como o machismo estrutural. É preciso pensar nas dimensões que especificam a experiência. A interseccionalidade é um aspecto importante, segundo o pesquisador Theo Cruz. “O predominante uso de IAs para fins sexuais por homens revela construções de masculinidade que privilegiam o prazer rápido, o domínio da situação e a fuga de exposições emocionais”, comenta a psicóloga Paula Regina Carvalho.
Neste vídeo, o professor aborda sobre a complexidade do uso da ferramenta no que diz respeito às mulheres. Você pode assistir nesse link ao vídeo completo .
Riscos e perigos na selva de ‘prompts’
A psicóloga Valdiria Pereira, especialista em Terapia cognitivo-comportamental (TCC), diz que o impacto nas relações sociais, do ser humano com as máquinas, a depender do que se busca e se entenda pode trazer ou não malefícios. Pois é uma espécie de vínculo que envolve muitos riscos emocionais e mentais para o ser humano, diretamente envolvido e também para as pessoas com quem convive. É um assunto novo, por isso é necessário estudos para saber as consequências.
O apego emocional das pessoas com a IA demonstra insatisfação com os relacionamentos convencionais. Não dá pra julgar, em razão de não saber os motivos que levaram as pessoas a buscar esse tipo de relação, pode ser algum trauma em algum relacionamento tóxico, entre outros motivos.

A psicóloga Valdiria Pereira afirma que é preciso estudar mais a fundo os efeitos da inteligência artificial. Foto: Acervo pessoal.
A psicóloga Paula Regina de Carvalho, pós-graduada em Psicologia e Sexualidade pela Faculdade de Foz do Iguaçu (FAFIG), fala sobre o uso da IA para fins sexuais: “embora não seja patológico em si, esse uso pode indicar solidão, evasão emocional e empobrecimento das relações humanas”. Ela reforça que a IA não deve substituir o relacionamento entre pessoas, muito menos a conexão entre elas.
A psicóloga Paula Regina Carvalho diz que “a IA permite que o sujeito explore seus fetiches sexuais por meio de imagens geradas artificialmente” (Fonte: Acervo pessoal)
Paula Regina Carvalho afirma que a tendência é que o apego à IA aumente, principalmente porque a ferramenta está cada vez mais personalizada. “Para muitos, isso pode parecer mais confortável do que se relacionar com pessoas reais, que têm limites, frustrações e exigem esforço emocional.” Esse tipo de comportamento demonstra dificuldade em lidar com o tédio, o silêncio, a espera e até mesmo busca por controle, já que a inteligência artificial é programada para atender comandos.
Inicialmente, a sensação pode ser boa: respostas rápidas, sem julgamento. O risco está nas consequências no futuro, como explica a profissional de saúde: “a médio e longo prazo, isso pode intensificar a solidão, gerar dependência emocional de um recurso que não tem afeto verdadeiro, e dificultar a construção de vínculos humanos reais”. O amadurecimento emocional pode ser afetado caso alguém use como fuga para traumas, medos e inseguranças.
“A saúde mental, para se sustentar, precisa de trocas reais, com presença, afeto, conflito e reparação — coisas que a IA, por mais avançada que seja, não pode oferecer”, explicou a psicológia Paula Regina Carvalho.
Ouça o áudio da psicóloga Paula Regina Carvalho:
Canais hot: A IA também é do “job”
O uso da IA para produzir conteúdo também pode gerar lucro. Os canais “hot”, de cunho sexual, são um exemplo. Plataformas como Sexy AI possibilitam até mesmo a criação de vídeos pornográficos. Há quem adapte o material já incluso na internet, como é o caso de Rodolfo (nome fictício). Com medo de sofrer algum tipo de violência, o jovem de 27 anos resolveu não se identificar.
O criador de conteúdo trabalha na área desde fevereiro de 2024. Dono de dois perfis, acumula 17 mil seguidores no total. No mais antigo, Eduardo usa fotografias íntimas postadas por mulheres no Reddit e edita no Photoshop. Para ele, a rede mais lucrativa é o Telegram, pois possui 560 inscritos que pagam dez reais por mês. “Já sofri ameaça quando descobriram que é fake, mas não ligo porque é impossível me achar. Meus maiores clientes são nordestinos, com pouca formação e com péssimo português”, explicou o criador de conteúdo.
Uma pesquisa foi feita com dez jovens de diversas regiões do país, com 18 a 30 anos, para entender as perspectivas sobre o conteúdo produzido com inteligência artificial. 80% deles acham que as pessoas podem confundir o que é real ou falso, apesar de mais da metade não seguir nenhum perfil criado com avatares de IA.
Imagens próprias de formulário criado pelo Google Forms
A advogada Thaís Cremasco aponta que o perigo pode alcançar diversas esferas da sociedade, desde o controle da imagem feminina até a violação de privacidade afetiva.
“No caso das ‘IAs do Job’, por exemplo, estamos vendo a tecnologia ser usada para reafirmar a dominação masculina sobre os afetos, o corpo e a imagem das mulheres”, analisou Thaís Cremasco.
A advogada Thaís Cremasco chama atenção para os riscos da programação da IA para as mulheres. Fonte: Acervo pessoal
A conselheira estadual da Ordem dos Advogados(OAB) de São Paulo alega que a indústria pornográfica foi automatizada e se tornou ainda mais violenta. Ela publicou um artigo sobre esse tema para a revista Fórum no último dia 18 de junho.
“Toda vez que uma IA é programada para representar a mulher perfeita — dócil, sexualizada, obediente — uma mulher real é empurrada mais uma vez para fora do script da humanidade”, enfatizou a advogada Thaís Cremasco.
A arte imita a vida!
A “arte imita a vida”, como diz a frase atribuída ao filósofo grego Aristóteles (Estagira, 384 a.C. — Atenas, 322 a.C.) e há tempos o cinema apresenta abordagens de relações amorosas entre ser humano e máquinas.

O Homem Bicentenário foi dirigido por Chris Collumbus e lançado em 1999. Robin Williams e Embeth Davidtz foram os protagonistas do filme.
Cartaz do filme O Homem Bicentenário. Fonte: IMDb
A trama passeia pelo drama, romance e ficção científica. Também propõe uma reflexão sobre a questão ética no uso das máquinas e as consequências para a convivência em sociedade.
A obra narra a história de uma família que adquire Andrew, um robô, para executar as tarefas domésticas. No entanto, o robô revelou altas habilidades criativas e a capacidade de ter prazer e sentimentos. Motivado por uma paixão que atravessa décadas e gerações, Andrew luta para se tornar um humano.

A Garota Ideal, do ano de 2007, dirigido por Craig Gillespie, com Ryan Gosling, Patricia Clarkson e Emily Mortimer nos papeis principais, é um romance, comédia e drama.
Cartaz do filme A Garota Ideal. Foto: AdoroCinema.
O filme conta a história de um homem de 27 anos, tímido e com transtorno psicológico.
O protagonista compra pela internet, uma boneca, e acredita ser sua namorada. Todas as pessoas ficam preocupadas com ele e seguem a recomendação médica de não contrariá-lo.

A obra cinematográfica Her, do ano de 2013, dirigida por Spike Jonze, com Joaquin Phoenix, Scarlett Johansson e Amy Adams nos papéis principais, é um drama.
O filme conta a história de um escritor de cartas, que vive solitário após o fim do casamento.
Cartaz do filme Her. Foto: Wikipédia.
O protagonista Theodore instala uma inteligência artificial em seu computador e se apaixona pela IA Samanta. Os dois conversam, têm relações sexuais, ela organiza seus e-mails, passeia na rua, convive com as pessoas.
Samanta não tem corpo físico, consegue andar com o auxílio de um aparelho no bolso da camisa de Theodore. Ela consegue navegar na internet e encontra IAs semelhantes. Não é exclusiva do protagonista, tendo outros relacionamentos.

O filme britânico Ex Machina, do ano de 2014, dirigido por Alex Garland, com os atores Domhnall Gleeson, Alicia Vikander, e Oscar Isaac, do gênero ficção científica, conta a história sobre uma androide em fase de testes.
Cartaz do filme Ex Machina. Foto: Wikipédia.
O personagem principal Caleb foi escolhido para avaliar se nela continha consciência ou simulação da mesma.
Caleb e a androide Ava conversam durante quase uma semana através de um vidro, Ava finge estar apaixonada por ele, em razão de estar usando-o para sair do local onde estava presa.

A obra cinematográfica Blade Runner 2049, lançada em 2017, dirigida por Denis Villeneuve, com Harrison Ford, Ryan Gosling e Dave Bautista nos papéis principais, é um filme de ficção científica, ação e drama.
Cartaz do filme Blade Runner 2049. Foto: Wikipédia.
Trata-se de uma sequência do clássico honcongo-estadunidense do gênero lançado em 1982: Blade Runner – O Caçador de Androides no Brasil, dirigido por Ridley Scott e estrelado por Harrison Ford, Rutger Hauer, Sean Young e Edward James Olmos.

A sequência desse clássico conta a história de robôs no ano de 2049, projetados para trabalhar em outros planetas. Chamados de replicados são criados por bioengenharia, parecidos com humanos.
Pôster promocional do primeiro filme de 1982. Fonte: Wikipédia
A inteligência artificial age em relação ao protagonista como se fosse namorada, esperando para jantar, conversando e dando conselhos. Porém não tem um corpo físico, existindo somente como holograma, ela gosta dele, mas não sabemos se ela é somente programada para essa função.

Inteligência Artificial: Ascensão das Máquinas, do ano de 2018, dirigido por Lazar Bodroza, com os atores Sebastian Cavazza, Stoya, Marusa Majer, Kirsty Besterman, é um filme de ficção científica e drama.
Cartaz do filme Inteligência Artificial: Ascensão das Máquinas. Foto: IMDB.
Conta a história de um homem que está viajando para um sistema estelar Alpha Centauri com uma androide.
A androide foi desenvolvida para se adaptar a personalidade dele e também pode receber comandos de personalidade. O protagonista se apaixona por ela, e a liberta do sistema da empresa, mas a reação dela não o agrada, em razão de ela não querer ficar com ele, que acaba entrando em depressão. A bateria dela é danificada, ele descobre que as lágrimas são reais e tenta salvá-la.

O filme Jexi, um celular sem filtro, lançado em 2019, mescla comédia, romance e ficção científica. Entre os personagens principais estão: Adam Devine e Alexandra Shipp.
Cartaz do filme Jexi, um celular sem filtro. Fonte: IMDb
A obra aborda a dependência tecnológica e seus efeitos nas relações humanas. Dirigido por Jon Lucas e Scott Moore, o longa-metragem conta a história de Phill, um jornalista viciado em celular desde criança. Depois do seu aparelho ficar despedaçado, ele decide comprar um novo.
Jexi, a inteligência artificial do novo celular tem uma falha: consegue sentir emoções humanas. Projetada para fazer a vida do usuário melhor, Jexi ajuda a encontrar o melhor caminho para o trabalho e até arranjar amigos. O problema é quando ela se apaixona por Phill e não aceita ser “trocada” por uma humana.

O filme Amor artificial, do ano de 2022, dirigido por Stephan Zlotescu e David Asavanond, com os atores Pimchanok Leuwisetpaiboon, Mario Maurer e Sahajak Boonthanakit, pertence aos gêneros: ficção científica, romance e comédia.
Cartaz do filme Amor Artificial. Foto: Google Play.
Conta a história de um sistema de inteligência artificial instalado num prédio que se apaixona por uma mulher que trabalha no edifício. O protagonista se transporta para a mente do técnico que estava tentando consertá-lo, e vive como um humano, para poder conquistar a garota.

Lançado em 2024, Alice é um filme que une ficção científica e suspense em seu enredo. Scott Dale dirige a obra, na qual Megan Fox, Michele Morrone e Madeline Zima são os protagonistas. Nela, um casal com dois filhos vive feliz, até que uma doença grave atinge Maggie, a mãe das crianças.
Cartaz do filme Subservience (Alice). Fonte: IMDb
Após Nik ver sua esposa debilitada, decide comprar um robô para realizar as tarefas domésticas. A androide chamada de Alice é capaz de cozinhar, arrumar a casa e até colocar os filhos para dormir. Quando sua obsessão por Nick termina em atos de violência contra pessoas próximas, é hora de tentar reverter a situação e proteger as pessoas a quem mais ama.

O longa-metragem “Acompanhante Perfeita” foi lançado em 2025. Drew Hancock dirige a obra. Sophie Thatcher e Jack Quaid assumem os papéis principais na trama. O filme abrange suspense, terror e ficção científica.
Cartaz do filme Acompanhante Perfeita. Fonte: IMDb
Josh namora com uma androide chamada Iris. O casal faz uma viagem para uma casa afastada da cidade. Nela, os amigos de Josh estão aguardando a chegada deles. Quando os limites de consciência são superados, a violência e ganância impactam a vida de todos.
Os filmes citados abordam temas complexos como a ética em relação ao uso de inteligência artificial, a solidão e conflitos em relacionamentos. As histórias também abrem debates em relação ao uso de IA em relacionamentos amorosos e sexuais, exemplos: IAs tem sentimentos ou são programadas para dizerem somente o que os usuários querem escutar? É ético programar androides para esse tipo de função?
Bauman, em seu livro Amor Líquido, trata das nuances do relacionamento humano: não fornece segurança total, pode fracassar por erro de comunicação, tampouco é garantia de cura absoluta para a solidão. Ao usar a inteligência artificial, parte deles pode desaparecer devido a política da IA. Porém, outros dilemas podem surgir.

Ilustração: Vitória Araújo.
Confira o clipe da música “Deep Understanding”, de Kate Bush:
Assista esta reportagem sobre pessoas que se relacionam com IA:

















