Por Laís Martins
Saias com muitos rodeios, batas, camisas, panos das costas, turbantes, peças minuciosamente bordadas, que, quando bem gomadas, representam a visualidade própria dos terreiros de candomblé.
No campo estético das religiões de matrizes africanas, o bordado de richelieu é sem dúvida o elemento representativo dos trajes usados, que representa a beleza e a exuberância própria desses espaços, efetivando uma moda singular.
O bordado de richelieu surgiu por volta do século XV na Europa configurando-se como um bordado intermediário entre o bordado tradicional e a renda.
Sua denominação ocorre entre 1624 e 1642, pelo uso freqüente nas vestes de Armanol – Jean du Plessis, cardeal e duque de Richelieu.
Os portugueses copiaram e trouxeram essa técnica de bordado para o Brasil. O richelieu requer muita paciência e segurança, já que é realizado com pontos cortados, onde os fios são retirados delicadamente até formarem verdadeiros vazios no tecido.
Na Bahia do século XIX, o traje de crioula também incorporou esse tipo de bordado, representando uma visualidade distintiva da mulher negra no Brasil escravocrata. Dentro dos terreiros de candomblé, as crioulas adotaram o richelieu em seus trajes, constituindo assim uma tradição.
Em Cachoeira, o uso do rechilieu não se detém apenas aos terreiros; foi também incorporado no traje típico da Irmandade da Boa Morte. D. Zelita, 77 anos, integrante dessa confraria religiosa, reconhece a beleza e a tradição desse bordado. Segundo ela, atualmente são poucas as pessoas que realizam esse tipo de bordado na cidade. “Tenho uma pessoa que borda pra mim sempre que preciso”, afirma.
Maria do Carmo, 70 anos, é uma das poucas bordadeiras que ainda realizam esse ofício na cidade vizinha, São Félix. Ela conta que aprendeu a bordar em 1960, em um curso de capacitação. Na época, chegou a bordar todo o seu enxoval de casamento; contudo, com o nascimento dos seus filhos, lhe faltava tempo para realizar esse ofício. Há 18 anos, depois de se aposentar, resgatou a o prazer de bordar o richelieu. Embora receba sempre encomendas, D. Maria reconhece ser ela mesma sua melhor cliente. “Eu mesmo quando quero, faço pra mim mesma. Fiz um vestido, certa vez, que fez o maior sucesso!”, brinca.
Em geral, as peças que fabrica são feitas para baianas de acarajés e mães de santo, mas não deixa de receber encomendas para roupas de cama e mesa. Conforme ela, “O richelieu só fica bem se for bem engomado”. E acrescenta: “As pessoas, em geral, não usam mais o richelieu por que acham que dá muito trabalho engomar”.
Silvelina Cordeiro, 67, é uma ex-bordadeira que trabalhou muitos anos numa cooperativa com mais de 20 mulheres na ladeira de São Joaquim, em Salvador. Lá trabalhava com encomendas locais e até mesmo nacionais, mas a maioria das suas encomendas era, principalmente, para as pessoas que cultuavam o camdomblé. Ela diz que o bordado pode ser feito em qualquer tecido que não desfie. Crepe, cambraia, popeline, jeans; porém, o mais usado é o linho branco.
Para desenvolver o bordado, o primeiro passo é fazer o desenho. Depois, são feitos cortes e começa o bordado na região previamente desenhada, podendo ser feito à mão ou à máquina. O trabalho é bem minucioso.
Na époça de D. Silvelina, ela e as outras bordadeiras reuniam-se em suas casas, porque não havia um lugar fixo para trabalhar, então começavam a bordar em conjunto para entregar suas encomendas a tempo. Segundo a ex-bordadeira, o tempo de trabalho das peças varia entre dias a meses.
Como naquele tempo era difícil cuidar de casa, marido e filhos, a rotina dessas mulheres era difícil. D. Silvelina conta que levantavam na madrugada para fazer o almoço enquanto seus esposos trabalhavam durante o dia na feira, ou na pesca. Os filhos iam junto com as mães para as casas de bordado, daí o porquê dessa tradição ser passava de geração em geração.
Sem bordar há mais de 10 anos, D. Silvelina trabalha, no momento, com um box de confecções de richelieu e outros tipos de bordado no Mercado de Arte de Feira de Santana. Segundo ela, a cooperativa fechou, porque muitas bordadeiras seguiram outro tipo de vida; outras faleceram. Ela diz sentir falta do companheirismo e do trabalho que faziam. “Sabe minha filha, o richelieu faz parte da minha vida, da minha família, passou da geração da minha avó, depois para minha mãe e assim pra mim. É uma pena a minha filha, às minhas companheiras de bordado não terem dado segmento a esse trabalho, sinto falta”, diz Silvelina.
Além de ser um artesanato delicado e ainda bastante procurado, é apreciado pelas pessoas que reconhecem a sua exuberância. Nas ruas ou nos terreiros, essas peças não deixam de estar na moda. Restaurantes, pousadas e casas que contemplam a arte, sempre exibem o richelieu como peças de extremo bom gosto. Afirma-se que a criatividade se sobrepõe a cada peça criada e o richelieu permanece há décadas sem perder a sua essência.