Uberização e a plataformização do trabalho 

Precarização das condições de emprego expõe população a situação de fragilidade social enquanto lucros de empresas avançam exponencialmente.

Por Rebeka Francis Santos.

A uberização e plataformização estão estabelecendo um novo modelo de exploração da força de trabalho. Nesse novo sistema, o trabalhador não dispõe de um vínculo empregatício com a empresa, o trabalhador é apenas um prestador de serviços e não possui nenhum tipo de direito trabalhista ou seguro social. Todo risco e responsabilidade inerente à função é transferido para o trabalhador que está prestando o serviço. Sendo assim, caso ocorra qualquer intempérie que gere prejuízo nos lucros da empresa, como acidente ou situação que o impeça de entregar uma mercadoria a tempo, o trabalhador terá que, compulsoriamente, pagar pelo dano, sendo descontado nos seus ganhos que, na maioria das vezes, já é escasso.

Podemos citar a UBER e o IFood como exemplo de grandes corporações que lucram através desse sistema de precarização da mão de obra humana. Com a crise do capital e a recessão dos mercados causada pela pandemia da covid-19, esse modelo de contratação está se tornando cada vez mais frequente no mundo. 

No Brasil, a precarização da força de trabalho achou guarida na reforma trabalhista de 2017 e, recentemente, com a situação de retração econômica e aumento da inflação, consequências da pandemia. Assim, assistimos ao desemprego e à falta de oportunidade que acometem aos cidadãos brasileiros, terreno fértil para a uberização e a plataformização da mão de obra. 

Dentre as principais vítimas desse sistema de contratação, temos os jovens, de família pobre ou classe média baixa, que estão enfrentando dificuldades para conseguir entrar no mercado de trabalho; as pessoas idosas que são arrimos de família e as mulheres que perderam seus empregos na pandemia e estão encontrando muitas dificuldades para voltar ao mercado de trabalho. 

E seja na busca pela independência financeira ou no desespero de conseguir pagar as contas, ao trabalhador brasileiro resta aceitar a oportunidade de trabalho que aparece, mesmo tendo total consciência de que não terão qualquer direito assegurado pelo trabalho desempenhado. 

Conforme traz o texto, a digitalização do modelo de trabalho, utiliza mecanismos do algoritmo como as estrelas, os bônus, os progressos dentro da plataforma que fazem com que o trabalhador encare o trabalho como se fosse um jogo, em que quanto mais tempo ele jogar mais dinheiro ele irá ganhar e dessa forma o trabalhador acaba ficando viciado no trabalho.

Esse modelo de trabalho aqui no Brasil ainda não foi regulamentado e sendo assim não são estabelecidas medidas que zelem pela segurança e bem-estar do trabalhador, situação que já vem mudando em alguns outros países como Inglaterra, Estados Unidos e Países da Europa, nesses países esses trabalhadores já estão começando a terem os seus trabalhos formalizados.

Os trabalhadores ganham somente as horas trabalhadas, o tempo que o trabalhador passa no aplicativo agendando serviços simplesmente não conta, os ganhos são aleatórios e não tem como saber, exatamente, quanto vai ter no final do mês para pagar as despesas. 

O valor do serviço não é estabelecido pelo trabalhador e sim pela plataforma que fica com uma porcentagem do valor por ter conseguido o cliente. Existem ainda os critérios de avaliação, para que o trabalhador possa continuar fazendo uso da plataforma, ele precisa ter uma nota mínima, caso esse critério não seja atendido, o trabalhador poderá sofrer sanções.

No modelo tradicional, o trabalhador possui os seus direitos trabalhistas; um salário preestabelecido todo fim de mês, que por lei não pode ser menos de uma salário-mínimo numa jornada de trabalho de 40 horas semanais, ou seja, 8 horas diárias; o seguro de vida; o décimo terceiro salário e os 30 dias de férias.

Enquanto nesse novo modelo de trabalho uberizado, o trabalhador não possui nenhum desses direitos.

É comum encontrar pessoas que chegam a trabalhar mais de 14 horas por dia e muitas vezes não conseguindo fazer nem um salário-mínimo ao final do mês. Esses trabalhadores também estão sujeitos a um desgaste físico e emocional muito grande e, caso um trabalhador se acidente ou desenvolva um transtorno psicológico, como uma depressão, a empresa não terá que se responsabilizar pela situação do trabalhador.

Por conta da jornada muito intensa de trabalho, os jovens que precisam se sujeitar a esse regime de trabalho, simplesmente não conseguem ter tempo para estudar, se qualificar e poder buscar condições melhores de vida e acabam ficando presos nesse ciclo de trabalho intensivo que só faz sugá-lo. Ocorrem também muitos casos de pessoas qualificadas e muitas até com nível superior, rodando de UBER para conseguirem sobreviver e pagar as contar.

A uberização refere-se às regulações estatais e ao papel ativo do Estado na eliminação de direitos, de mediações e controles publicamente constituídos; resulta da flexibilização do trabalho, aqui compreendida como essa eliminação de freios legais à exploração do trabalho, que envolve a legitimação, legalização e banalização da transferência de custos e riscos ao trabalhador. (Abílio, 2017, 2020)

Algumas empresas estão aproveitando para migrar para um modelo de produção que evite o desperdício e que torne a produção mais eficaz, adotando, por exemplo, o modelo Just-in-time, que é um sistema que tem como objetivo produzir somente a quantidade exata de um produto, de uma forma mais rápida, de acordo com a demanda, sem ter a necessidade de fazer estoque e fazendo com que a mercadoria chegue ao seu destino de forma muito mais rápida e isso faz com que a forma de remuneração seja por comissão ou seja de acordo com o ritmo de produção do funcionário, quanto mais ele produzir mais ele vai ganhar.

Esse novo modelo de trabalho que está se apropriando do digital, vem trazendo a possibilidade de as empresas poderem contratar profissionais freelances prestadores de serviços para resolver uma certa demanda e isso acabou diminuindo a barreira de entrada para os profissionais de algumas áreas no mercado, um grande exemplo são as novas profissões que surgiram recentemente no digital como Social Media, Copywriting, o designer gráfico, redatores publicitários, editores de vídeo, gestores de tráfego e outras profissões mais tradicionais, como jornalistas, professores, engenheiros, veterinários e entre outras que as empresas contratam para resolver uma demanda específica e que não precisam necessariamente assinar a carteira desses profissionais ou colocá-los dentro da empresa, esses profissionais podem prestar esses serviços no modelo homeoffice e eles podem simplesmente estabelecer com esses profissionais um contrato de prestação de serviço e até mesmo pagar mais barato por esses serviços, dependendo do nível de prestígio desses profissionais. E por mais que pareça uma ideia perfeita dentro de um novo meio de trabalho alternativo, não podemos ser ingênuos em acreditar que  essas empresas não visam lucrar em cima de uma pessoa que está desempregada e precisa de alguma renda esse é o exemplo do Mauro, 39 anos, motoboy há 15, entrevistado em 2018, sintetiza a condição do Just-in-time e a relação desta com a monopolização:

“Você vai até achar estranho de eu falar só Loggi, hoje eles conquistaram o mercado, tanto que você tem que trabalhar até meia-noite, a carga horária aumentou... antigamente você tinha meta, eu particularmente e vários amigos meus, tinha meta de R$300 por dia… ‘Eu vou fazer, tipo, até às 6h, no máximo até 7h’… você conseguia… hoje não. É o que a gente fala, o cara quando não tem família, é solteiro, é diferente, ele trabalha até a hora que ele quiser, então hoje a Loggi está praticamente obrigando você ficar até meia noite, 11 horas na rua. Antes tinha muita entrega, não tinha tanto estresse, não era tão nervoso, hoje em dia você cansa mais andando de moto, gastando, sem ganhar nada do que trabalhando. Por isso que eu falo, nesse último ano agora, pelo amor de Deus, o stress, nervoso, cansaço, as dores físicas nas costas, mental, piorou, porque você está andando mais de moto do que fazendo serviço, porque você tem que ficar rodando”. Mauro, 39 anos, motoboy.

A narrativa de Mauro evidencia uma situação recorrente com trabalhadores que se aplicam a condição do Just-in-time. Mauro como tantos outros motoristas e entregadores que não relacionam o trabalho com limites determinados sobre o tempo de trabalho, mas com o ganho necessário a ser obtido por dia.

Portanto, apesar da apropriação da tecnologia no mundo do trabalho, ter como objetivo gerar mais eficácia e uma melhoria no ritmo de produção do trabalhador, na prática não é dessa forma que as coisas acabam acontecendo, pois essas plataformas são programadas para retirar para si mesmas a maior parte do lucro gerado pelo serviço prestado pelo trabalhador. A plataforma acaba gerando uma barreira entre o trabalhador e os seus direitos trabalhistas, porque o trabalhador ao se cadastrar na plataforma é considerado somente um parceiro da empresa e não um funcionário e dessa forma o trabalhador acaba tendo todos os seus direitos anulados.

*Imagem em destaque produzida com ferramenta de inteligência artificial

Referências

  1. ABÍLIO.L. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? São Paulo 2020
  2. REVISTA ÉPOCA E NEGOCIOS. Loggi, o mais novo unicórnio brasileiro quer ter frota de aviões para fazer entregas. Junho de 2019
  3. UOL. Loggi agora unicórnio quer fazer entregas de um dia no Brasil. São Paulo, 5.6.2019.
  4. Canal CONTEXTO, O patrão invisível: entenda a uberização do trabalho 2020
  5. MODA, F. Trabalho por aplicativo e uberização: as condições de trabalho dos motoristas da Uber. Texto de qualificação. Guarulhos, 2019. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal de São Paulo. Guarulhos, 2019.
  6. GNT, papo de segunda- Trabalhar com aplicativo: liberdade ou precarização?
  7. ABÍLIO, Ludmila C. Dos traços da desigualdade ao desenho da gestão: trajetórias de vida e programas sociais na periferia de São Paulo. 2015. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2015.
  8. AMORIM, Henrique; MODA, Felipe B.; MEVIS, Camila. O empreendedorismo não é apenas uma ideologia: a subordinação no trabalho plataformizado. In: LEONE, Eugenia; PRONI, Marcelo (orgs.) Facetas do trabalho no Brasil contemporâneo. Curitiba: CRV, 2021. p. 325-342.