A urgência de haver mais mulheres negras na política institucional

O ordenamento compulsório de controle infligido pelo Estado brasileiro aos corpos das mulheres, em especial as mulheres negras, através da jurisprudência é um alerta para as eleições de 2022 

Adriane Primo

Mulheres de punho cerrado durante ato no Rio de Janeiro contra as violências do Estado brasileiro. Foto: Kilomba Produções

Meu nome é Adriane Primo, tenho 35 anos, sou uma mulher negra, nordestina, bissexual e comunicadora por vocação. Sou filha de Soane. Neta de Cândida e Hilda. Sobrinha de Lindiane, Macione… Prima de Seilane, Ariane… Madrinha de Jennifer. Amiga de Joelma, Natália… esposa de Elisa. É nessa estrutura matriarcal que estou inserida e me apresento, para dizer que este texto é sobre mulheres. 

Poderia ser escrito para exaltar a nossa sublime existência no mundo. Mas, infelizmente, é sobre a nossa secular resistência ao ordenamento compulsório de controle infligido pelo Estado brasileiro aos corpos das mulheres, em especial as mulheres negras. Método mais uma vez escancarado à sociedade recentemente, dessa vez pelo The Intercept Brasil, em uma reportagem sobre a juíza Joana Zimmer, que induziu uma menina de 11 anos a desistir do aborto legal.

Essa notícia me fez engulhar porque prova que o controle sobre os corpos de mulheres pelo Estado brasileiro começa muito antes do nosso entendimento individual de corpo. Veja só: Uma criança – de onze anos – estuprada, grávida, induzida a seguir com a gravidez por uma juíza  após ter o direito ao aborto legal negado pelo hospital público que a mãe recorreu para fazer o procedimento. Há também o caso da jovem de 22 anos que teve o direito ao aborto legal negado porque, mesmo tendo risco de morrer com a gestação devido ao histórico de perda fetal após sofrer AVC, o juiz que julgou seu caso entendeu que havia “apenas probabilidade de falecimento e não certeza que [a mãe] iria falecer”. 

As violências que estas mulheres sofreram, além de extrapolar aspectos humanitários, se agravam por ferir o estado democrático de direito. Pois, não bastou para os juízes saberem o artigo 128 do Código Penal, de 1940, que diz que a mulher tem direito ao aborto no Brasil em apenas duas situações: quando a gestação decorre de estupro ou quando a gravidez representa risco à vida da mulher. 

Não bastou porque, afinal, quando o Estado não nos mata por bala, encarceramento, desmanche de políticas afirmativas de acesso à educação, saúde, acesso aos direitos básicos, etc. Ele nos mata através da jurisprudência da raça, do gênero e da classe. 

Sendo, portanto, este artigo sobre a vida das mulheres brasileiras, ressalto a importância de haver mais mulheres negras ocupando cargos dentro da política institucional. Antes de tudo porque, atualmente, as mulheres negras ocupam menos de 3% de cadeiras no Congresso Nacional, ao mesmo tempo em que representam o maior grupo demográfico do país (27%), segundo o relatório “Democracia Inacabada – Um retrato das desigualdades brasileiras”, da Oxfam Brasil. Aqui vale lembrar também o quão essencial foi ter no legislativo a deputada federal Benedita da Silva (PT) que em 1991 elaborou um requerimento para a criação da Comissão Parlamentar Mista para investigar a esterilização em massa de mulheres brasileiras. A CPI da Esterilização, como ficou conhecida, significou um capítulo considerado inédito pelas feministas de articulação entre os movimentos de mulheres e o Congresso Nacional. O relatório final apontou a ação não oficial de controle da natalidade através da esterilização cirúrgica instalada no Brasil desde a década de 1960, e confirmou que esse cenário era mais característico das regiões pobres e em maior proporção nas mulheres negras. A CPI resultou no projeto de lei sobre planejamento familiar aprovado em 1996. 

Benedita da Silva – a Bené, como carinhosamente é conhecida – é uma mulher que certamente nos inspira a buscar mais representação no legislativo. Mas o assassinato ainda sem resolução da vereadora Marielle Franco e Anderson Gomes, em 2018, e as ameaças constantes sofridas pelas deputadas Talíria Petrone (PSOL), Andreia de Jesus (PT), pela vereadora Benny Briolly (PSOL), entre tantas outras que conseguiram diversificar a fotografia de um Estado ainda muito branco e enraizado no modus operandi colonial, nos mantém alertas, mas sobretudo confiantes na força que a radical imaginação de mulheres negras brasileiras tem para mudar as estruturas sociais do país.