Melodias pluviais

Das águas do Samba nutre-se uma nação, entre as epistemologias brasileiras e a macumba radical dos bambas, te levo a memórias de uma maré cheia

David Sol

“Alvorada lá no morro / Que beleza / Ninguém chora / Não há tristeza / Ninguém sente dissabor / O sol colorindo é tão lindo / É tão lindo / E a natureza sorrindo / Tingindo, tingindo”. Na cadência do samba de Cartola, eu sinto meu corpo respirar, e ao mesmo tempo exalar a essência de uma lembrança da labuta diária de um homem preto, que ao final do dia ao som dos anéis de bamba se acalmava cozinhando a janta. A memória do afago preto, oriundo das águas do São Francisco, possibilitou que minhas escritas tomassem corpo e sonoridade. Sempre pensei olhando o céu de Santo Amaro, que sobreviver em terras brasileiras é barril dobrado. O Maestro, concedeu-me desde curumim os acordes que narro nas frases seguintes: No drama não pode ter choro; na fome não pode ter descanso; e na morte, renasceríamos em algum encanto.  

Você pode dar o nome de literatura ao que está lendo, ou ensaio, escrita poética, até mesmo crônica. Mas, assumo a ladainha como norte do cruzo que caminho e do que vêm antes de mim. Meu caro leitor, deixa eu te contar uma história que ninguém conta. Desde cedo entendi que as dificuldades normalizadas na nossa sociedade desencantada foram amenizadas com as artimanhas de pessoas que denomino de Maestro(a). Sabe aquele sujeito que após carregar peso na construção da casa de uma das suas filhas, cantava a malandragem no quintal? Ou aquela que bebia cachaça e cantarolava para diminuir as dores do corpo após faxinar e ser assediada na casa do branco? Maestro(a) são indivíduos que cresceram através da marginalidade arquitetada pela branquitude, e consequentemente são desobedientes por que sobreviveram e hoje gritam sua COR. 

Por isso, samba para mim é filosofia. Talvez você estranhe um pouco se eu afirmar em tom ontológico que o meu Maestro, Heitor dos Prazeres, Zeca Pagodinho, Edith do Prato, João do Boi, Pixinguinha, Elza Soares e tantas outras existências são minhas fontes de saberes científicos. Ora, seguramente nunca iriam duvidar se utilizasse de um tom erudito como gênero de fonte de referência. Então, estamos limitados a morar na filosofia eurocêntrica? E se eu quiser ir além da estética para entender a filosofia que mora nas ruas, lapas e favelas?

O samba e todos seus símbolos são dinamizadores da nossa coexistência, nessa calunga que é o Brasil.  Impulsiona o nosso afeto, nossa sociabilidade e pode ser utilizado para entender a atmosfera das estruturas das nossas giras no tempo.  Entre o miudinho, o pandeiro, a faca e o prato está a nossa política-ética que é ensinada na pedagogia dos saberes-fazeres presentes na filosofia do samba. É coisa de pele, da nossa pele. 

Cantar e sambar é Ética e mora na Política. Oriundo dos princípios dos bares, do quintal e do terreiro, o samba é o pluvial que subiu aos céus do Recôncavo e germinou os morros do Rio de Janeiro. E nesse trajeto entre o Paraguaçu e a Lapa, está tramada a nossa história. Portanto, a lei é “deixar o samba chegar”, como aprendi com Leci Brandão. E deixando ele adentrar nossa escrita-casa, aprendemos que a macumba radical dos bambas e das tias impulsionaram o caráter plural da formação da identidade cultural brasileira. 

Ainda que sejamos todos filhos da rua e da puta, a lei é deixar a vida nos levar com todas as nossas filosofias do agora, que foram elaboradas no passado e recriam uma possibilidade de futuro. Meu Maestro é Antônio Rocha, conhecido pelo apelido Sr. Juazeiro, que de longe exibe sua maestria de onde nasceu como alicerce da sua liberdade. Ele sabe de onde veio, e sabe cantar a sua história do semiárido nordestino na companhia de todos os malandros e navalhas da noite. Portando, entre o surdo de primeira ao pandeiro, está toda sua sapiência, estão as melodias-pluviais da re-existência, está a nossa filosofia.

FOTO + LEGENDA (DAVID SOL)

Glossário:

Barril dobrado – Algo muito tenso ou complicado;

Curumim – Criança, menino (a) ou garoto (a);

Calunga – O termo aqui é utilizado com referência da religião de Umbanda, que popularizou o significado como “Cemitério” ou local com grande despejo de corpos;

Giras – A palavra é utilizada como modo de contabilização da temporalidade, algumas filosofias brasileiras fazem o uso das alterações da lua, constelações ou a alta/baixa da maré para agendar os cultos aos encantados;

Macumba – É uma epistemologia elaborada a partir dos saberes fazeres das populações africanas e indígenas que recriaram o modo da cotidianidade no espaço para se manter vivos;

Malandros – Referência ao meu companheiro Zé Pilintra;

Navalhas – Referência as Marias e Pomba Giras que dominam a noite brasileira.