O adeus a Bié dos Oito Baixos

Prosa e originalidade marcaram a carreira do sanfoneiro que juntou samba de roda com o baião

Lila Santos

Foto: Acervo Pessoal

O artista feirence Bié dos Oito baixos, 68 anos, lançou em junho seu primeiro EP (homônimo) de sete faixas, no qual os ouvintes são imersos em um passeio por feira livre, festas populares e arraias. No dia seguinte ao lançamento, dia 16, sofreu um AVC (acidente vascular cerebral), que acabou colocando um ponto final em seus 58 anos de carreira no início da tarde de domingo do dia 29 de agosto de 2021. Bié estava internado no hospital Clériston Andrade e, apesar das sessões de fisioterapia para recuperar os movimentos do braço esquerdo, não resistiu as complicações. O sepultamento foi realizado na manhã da segunda-feira 30 de agosto, no cemitério Jardim das Flores em Feira de Santana com direito a samba de roda na despedida.  

A notícia circulou rapidamente pela a cidade comovendo amigos próximos, conhecidos e órgãos culturais do estado da Bahia que manifestaram notas de pesar nas redes sociais. Para a feirense Marcela Prest o artista “deixou um legado de resistência na cultura do município”. O músico Ricardo Correia declarou: “fico aqui com a sua música e expressão simples de um homem da roça”.  A Secretaria de Cultura do Estado da Bahia publicou na página oficial que “o sanfoneiro sempre esteve nas festas e tocadas populares dos bairros urbanos e rurais da cidade”.

Nascido em Feira de Santana-Ba, Francisco da Silva Sena era o típico cabra invocado, danado! Bastou aprender a tocar sanfona com dez anos de idade que já saiu pelo o mundo tocando em circos, bares, barracas, formava pau-de-sebo, quebra-pote, corrida de ovo no saco para atrair público e assim, conseguir sustentar os seus pais. Voltou para a cidade natal com 25 anos, dessa vez “casado, com a sanfona nas costas e com uma menininha no braço”.  Mirinha, companheira de vida do Bié aprendeu a tocar triângulo para se tornar a triangleira. “Eu tinha 12 anos de idade, íamos prosando, namorando, tocando, batendo triângulo e agogô. O nosso samba era de fazer calo nos pés”, recordou Mirinha.

O morador da comunidade de Sete Portas que surpreendia com jargões, originalidade e irreverência costumava passear com a sanfona numa bicicletinha pelas ruas da cidade. Dona Santinha era a proprietária da Barraca e sem a contribuição dela esse samba não seria possível de acontecer. “Tudo começou ali na feira quando peguei a minha sanfona e cheguei lá na barraca, tinha um senhor tocando e uma mulher do lado me olhando. Dona Santinha não sabia que eu tocava”, Bié dizia sempre quando entrevistado.

Foto: Acervo Pessoal

Obras

No EP lançado no mês de junho, os ouvintes são emersos num passeio por feira-livre; festas populares e arraiais. O trabalho conta com sete faixas autorais e duas faixas com participações especiais. Entre as colaborações estão: Eraldo Aboiador, na canção Aboio para Bié; e a última canção com a participação especial de dona Santinha (compositora e cantora da música “Fui na macumba”, faixa sete). O tempo de execução foi de 18h48min no total. Esse projeto foi custeado pela a prefeitura de Feira de Santana e pela Secretaria Municipal de Cultura Esporte e Lazer via Lei Aldir Blanc, direcionada pela Secretaria de Cultura do Ministério do Turismo, Governo Federal.

O disco foi construído com figuras imagéticas, aspectos característicos da personalidade do artista, trazendo a vivência do cantor numa história narrada e uma experiência de escuta de um disco de vinil; além de nos permitir conhecer a feira-livre, área rural e ambiente festivo. Esse projeto durou entre os meses de janeiro e maio de 2021 e contou com o selo da produtora Banana Atômica e o produtor musical Uyatã Rayra, que trabalhava com Bié desde 2014. “Transformar um estúdio numa feira-livre para que o ouvinte fosse transportado para esse ambiente que é naturalmente feito de acasos, foi um dos maiores desafios do projeto. Nesse último mês nos dedicamos para reverter o quadro de saúde dele. Com ele aprendi a amar as segundas e a feira-livre, lamentou Rayra.

Em 2018 o documentário intitulado “Bié dos Oito Baixos” registrou a manifestação cultural e projetou o trabalho do cantor em nível internacional. A exibição rendeu visibilidade em festivais, imprensa e na corroboração do “Samba do Bié”. O projeto audiovisual foi premiado na categoria de “Melhor Montagem” no 8º Festival Curta Brasília (Brasília-DF; 2019), selecionada nos festivais 11º Festival Internacional do Documentário Musical (In-Edit Brasil; São Paulo-SP; 2019); 17ª edição do Curta-Santos (Santos-SP; 2019) e na 3ª edição da Mostra Cine Baru (Sagarana-MG; 2019). Exibido internacionalmente nas cidades de Pretória (África do Sul;2019) e Maputo (Moçambique; 2019). 

Foto: Acervo Pessoal

Pujança do Bié

Bié alegrava o Centro de Abastecimento de Feira de Santana, todas as segundas-feiras. Para encontrar o sanfoneiro só bastava ir até a feira e se vislumbrar com a bicicleta enfeitada ao som do boiadeiro. Encostar-se ao bar e permitir que a magia acontecesse regada de samba com baião, cantoria e gargalhada! Ali encontrava-se o rei das verduras que reinava entre os maxixes, mangas, jacas e chuchus. “A gente comia água o dia todo, pois o samba só é bom quando sai bêbado”, garantia o cantor em vida.

O homem do dedo ligeiro comandou esse evento por mais de 10 anos até o ano de 2018. A festa inclusiva era embalada por uma sanfona de 8 baixos, zabumba, triângulo, brincantes, improvisos musicais e prosas. A manifestação popular foi vencida após inúmeras ordens de proibição pela a direção local. “Fiquei triste porque eu já estava acostumado com a brincadeira. Ficava sentado com a turma prosando, bebendo, dando risada para não ficar triste. O povo ali só vendia com zoada”, disse Bié em uma de suas entrevistas.

O samba permitia através dos movimentos corporais que uma manifestação histórica acontecesse. O cantor relembrou em uma de suas entrevistas um episódio em que enfrentou a gula e interesse de quem possuía o poder. “A barraca era tudo de taboa, aí eu pelo o meio brincando. Os policias diziam: – Rapaz, você é doido? Eu disse: – Não, aqui a gente tá se divertindo! Tocando e bebendo a cervejinha para alegrar as idéias…” Bié partiu deixando legado e resistência. O samba de roda com baião ficará nas lembranças de quem compartilhou vivências com o artista.O coro não vai mais comer do meio do dia até a boca da noite.

Escute e assista agora duas obras deixadas por Bié dos Oito Baixos:

Fontes:

https://www.acordacidade.com.br/noticias/247805/sanfoneiro-bie-dos-8-baixos-morre-aos-68-anos-artista-sera-sepultado-nesta-segunda-feira-30-.html

http://www.cultura.ba.gov.br/2021/07/19504/LeiAldirBlanc-Prosa-e-musica-marcam-o-Arraia-de-Bie-dos-8-Baixos.html

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