A instituição enfrentou quatro tragédias em seus 74 anos, e a última foi em 2016, com a destruição de cerca de 500 obras
Dalila Bispo
A Cinemateca Brasileira, que abriga o maior acervo audiovisual da América do Sul e é a principal responsável pela preservação do patrimônio do cinema brasileiro, incluindo cerca de 250 mil rolos de filmes e mais de um milhão de documentos, como roteiros, cartazes e livros, referentes às mais diversas obras, vive um risco eminente de sofrer outro incêndio a qualquer momento por falta de medidas preventivas eficientes.
No dia 12 de abril de 2021, foi publicado o “Manifesto dos trabalhadores da Cinemateca Brasileira”, que fazia um alerta sobre os riscos que a cinemateca está sujeita: “A instituição enfrentou quatro incêndios em seus 74 anos, sendo o último em 2016, com a destruição de cerca de 500 obras. O risco de um novo incêndio é real. O acompanhamento técnico contínuo é a principal forma de prevenção.”
A atual presidenta da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA), Débora Butruce, conta que a associação sempre esteve presente, participando de cartas, seminários e audiências públicas a fim de reforçar os riscos que a instituição estava sujeita.
“Ninguém imaginou que a Cinemateca iria passar por tantos incêndios, nós vínhamos alertando há muito tempo, por conta do modelo de gestão, que não dá conta de uma instituição de memória como a Cinemateca Brasileira. Atualmente, essa pauta está em evidência, as pessoas se mobilizam por conta da tragédia, mas não deveriam precisar de tragédia pra se mobilizar por algo que poderia ser evitado”, citou Débora.
No dia 29 de julho, a Cinemateca Brasileira foi acometida por um incêndio que afetou o galpão da Vila Leopoldina, localizado na zona oeste de São Paulo. Fundada em 1940, a Cinemateca já passou por situações similares anteriormente, somando cinco incêndios e um alagamento que comprometeram grande parte dos arquivos e acervos.
O corpo de bombeiros informou que o fogo foi provocado devido a uma manutenção no sistema de ar condicionado realizado por uma empresa terceirizada contratada pelo governo federal.
O desmonte do corpo técnico da Cinemateca
Em 31 dezembro de 2019, com a não renovação do contrato com a Organização Social Associação Comunicação Educativa Roquette Pinto (ACERP), os funcionários continuaram trabalhando no local de forma improvisada, sem recursos e salários, com medo de abandonar seus postos e colocar o acervo da Cinemateca em risco, decidindo permanecer no local até que uma nova entidade fosse designada para cuidar da instituição.
Entretanto, em julho de 2020, o secretário da cultura, Mario Frias, solicitou que os funcionários entregassem as chaves da instituição, e a Cinemateca Brasileira passou a ser responsabilidade da Secretaria Especial da Cultura, órgão do Ministério do Turismo.
Surge então o movimento “SOS Cinemateca”, composto pelos ex-funcionários da cinemateca que cobram medidas e destacam os riscos de incêndio e perda de arquivos em decorrência da falta de um corpo técnico qualificado.
O grupo vem alertando para o risco de um incêndio ou uma tragédia similar desde que foram obrigados a deixar a cinemateca. O galpão da Vila Leopoldina abrigava rolos de filmes – materiais a base de nitrato de celulose – que são altamente inflamáveis e delicados, por isso necessitam do acompanhamento de uma equipe técnica.
Tomada das chaves e abandono da Cinemateca
Ainda em julho de 2020, o Ministério Público Federal em São Paulo (MPF-SP) entrou com uma ação na Justiça contra a União por abandono da Cinemateca Brasileira. A Promotoria apontou problemas como risco de incêndio, fim do contrato com a brigada de incêndio e com a equipe de segurança, atrasos nas contas de água e luz, atraso no pagamento de salários.
MPF alertou governo federal para risco de incêndio na Cinemateca em audiência, no dia 20 de julho de 2021. “Pelo MPF, houve comentários sobre a visita realizada e sobre o fato de terem sido bem recebidos. Destacou, entretanto, o fato de risco de incêndio, principalmente em relação aos filmes de nitrato”, diz o termo da audiência.
Apesar de todos alertas e prazos estendidos para que o governo federal adotasse medidas para resolver as questões da Cinemateca Brasileira, apenas uma vistoria foi feita à sede, em 30 de junho, pelo secretário do audiovisual, Bruno Cortês, e vereadores da Comissão de Educação da Câmara Municipal de São Paulo. O relatório da visita atestou boas condições gerais.
O que se perde com o incêndio de 29 de julho?
Aproximadamente 4 toneladas de documentos sobre a história do cinema brasileiro foram perdidas durante o incêndio. Segundo os ex-funcionários da Cinemateca, pesquisadores e preservacionistas, o galpão da Vila Leopoldina abrigava:
- Grande parte dos arquivos de órgãos extintos do audiovisual, relacionados aos trabalhos da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme) e do Instituto Nacional do Cinema (INC), ambos criados nos anos 1960, e do Conselho Nacional de Cinema (Concine), criado nos anos 1970;
- 100 caixas com parte do acervo de documentos do cineasta Glauber Rocha, como duplicatas da biblioteca dele;
- parte do acervo da distribuidora Pandora Filmes, com cópias de filmes brasileiros e estrangeiros em 35mm;
- parte do acervo produzido por alunos da ECA-USP em 16mm e 35mm;
- parte do acervo de vídeo do jornalista Goulart de Andrade;
- equipamentos e mobiliário de cinema, fotografia e processamento laboratorial, muitos deles fundamentais para consertos de equipamentos em uso e relíquias que iriam compor um futuro museu;
- matrizes e cópias de cinejornais, trailers, publicidade, filmes documentais, filmes de ficção, filmes domésticos, além de elementos complementares de matrizes de longas-metragens, todos estes potencialmente únicos.
Quem toca as pautas de preservação audiovisual no Brasil?
Saindo do âmbito das instituições governamentais, muitas associações trabalham de forma independente para apoiar a causa dos ex-funcionários da Cinemateca Brasileira. A Associação Brasileira de Preservação Audiovisual é uma organização sem fins lucrativos que participou ativamente das movimentações contra o abandono da Cinemateca.
A presidenta Débora Butruce explicou como surgiu a associação e o seu intuito preservacionista: “A ABPA foi fundada em 2008 a partir do amadurecimento de profissionais da área e ideias. A preservação é essencial para evitarmos os erros do passado, tanto no aspecto político, como cultural, artístico e social. Muitas coisas mal interpretadas no passado, como “Limite”, de Mauro Peixoto, puderam fruir no futuro graças à preservação dessa obra.”
No dia 7 de agosto, marcando um ano da tomada das chaves, a comissão em defesa da Cinemateca se reuniu em várias capitais do país para protestar contra o desmonte da instituição e exigir medidas de responsabilidade, visando evitar que uma tragédia maior aconteça.
Atos pelo país: São Paulo, Brasília, Curitiba, Porto Alegre e Rio de Janeiro (de cima para baixo)
Débora Butruce também ressaltou que esse é um patrimônio público, direito de toda sociedade civil brasileira, proteger e cuidar é de responsabilidade de todos: “As pessoas têm que entender que esse patrimônio é público, ele é de todos nós. A memória guarda muito do que somos e se não lutarmos pela preservação isso a nossa cultura vai se perder. A pandemia demonstrou a importância da arte das nossas vidas. A história de constituição dessa memória é fruto de quem nós somos.”
Iniciativas no recôncavo baiano
Para além do cenário nacional, a preservação audiovisual também alcança seu espaço dentro do recôncavo baiano. O curso de Cinema da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) tem criado ações que estimulam os estudantes interessados no setor, com o intuito de preservar tudo aquilo que já foi produzido na cidade de Cachoeira (BA).
A professora do curso de Cinema da UFRB, Ana Paula Nunes, coordena o PET de Cinema e traz uma iniciativa conjunta com os alunos para preservar a memória do curso. “O nosso curso já tem uma memória, sobre tudo que já vem acontecido nesses 12 anos. A gente não tem nenhum funcionário, nada que mantenha a regularidade do acervo de cinema, então estamos fazendo um grande trabalho de pesquisa em busca desses acervos”, disse Ana Paula.
Apesar da grande vontade de fazer esse projeto crescer, o curso de cinema da UFRB ainda não conta com nenhum componente curricular diretamente ligado a área de preservação, o que torna mais difícil o acesso a informações do setor.
Contudo, Ana Paula explica que cabe aos professores incentivar os alunos que despertam um interesse por essa área. “É um trabalho de formiguinha, um esforço de todas as áreas para conseguirmos chegar lá. Cabe aos professores mais apoiar do que encabeçar, dar total apoio aos alunos interessados na área. A meta seria desenvolver um projeto de captação de recursos para fazer isso no recôncavo. Para além da academia, a sociedade civil precisa conhecer mais a importância dessa memoria, dessa preservação”, explicou.
Para conhecer melhor essas organizações, siga pelo Instagram:
@soscinematecabrasileira – Movimento dos ex-funcionários e funcionárias da Cinemateca Brasileira
@abpreservacaoaudiovisual – Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA)
@petcinema – PET Cinema UFRB