Quem entre nós pode ser visível? Lesbianidade e resistência em Cachoeira

Lésbica. Sapa. Fancha. Caminhoneira. Caminhão.  Sapatão. Diferentes palavras que carregam o mesmo significado: mulheres que amam e se relacionam exclusivamente com outras mulheres. As lésbicas, sem escapar ao significado central de sua existência, também recebem outras definições, algumas mais poéticas, outras mais políticas, que poderão ser lidas ao longo desta matéria.

A história das lésbicas é uma história marcada por processos de invisibilidade. Mulheres que amam mulheres são, no mínimo, duplamente apagadas. Diferentes estratégias tem sido adotadas na tentativa de apagar a existência lésbica: da destruição dos registros existentes sobre lésbicas – poemas, memórias, escritos, fotos -, à transformação de lésbicas e sociedades lésbicas existentes em mitos – como as amazonas -, passando pela internação compulsória de lésbicas em manicômios e conventos à tratamentos de tortura realizados pela medicina, psicologia e pelas igrejas cristãs, incluindo ainda o casamento forçado entre lésbicas e homens. A história lésbica é, portanto, difícil de resgatar em meios aos silêncios e violências que acometeram essas mulheres, mas é também uma história de luta e resistência, de mulheres que ainda que sem referências positivas e sem conhecimento de tradição e continuidade da existência lésbica ousam repetidamente construir novas narrativas, memórias e registros sobre si mesmas e suas iguais.

O mês de agosto é considerado o mês da visibilidade lésbica, sendo o dia 29 de agosto o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, data em que ocorreu o primeiro Seminário Nacional de Lésbicas (Senale) em 1996 na cidade do Rio de Janeiro, uma conquista para o movimento lésbico brasileiro que desde a década de 1980 constrói pautas e processos de luta de forma autônoma diante da lesbofobia experenciada tanto nos espaços promovidos pelos movimentos gays/de diversidade sexual como nos movimentos feministas. Lésbicas tem, portanto, enfrentado a invisibilidade não somente na sociedade, em disputa com o Estado Patriarcal e suas instituições, como também dentro dos movimentos de esquerda.

   

Cachoeira, cidade histórica e heróica devido ao seu protagonismo na luta pela independência da Bahia e do Brasil, bem como palco de diversas outras lutas de resistência e libertação, tem sido também espaço de realização da Parada da Diversidade, que desde o ano passado se tornou Unificada, construindo aliança com a cidade de São Félix, e que caminha agora para sua oitava edição, a ser realizada em outubro. Contudo, só contou com a presença de lésbicas em sua organização no ano passado, através da aliança entre a Associação Grupo Gay de Cachoeira (AGGC), ONG de defesa dos direitos LGBT, do Gira, grupo de estudos feministas em política e educação da Universidade Federal da Bahia (UFBa) e do LES – Laboratório de Estudos e Pesquisa em Lesbianidade, Gênero, Raça e Sexualidade, grupo de pesquisa vinculado à Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), que conta com a participação de lésbicas militantes autônomas. Assim, em 2016 a Parada da Diversidade, para além da caminhada acompanhada por trio elétrico que já ocorria nos anos anteriores, contou também com o I Seminário da Parada da Diversidade e o Cine Sapatão, que foram espaços de reflexões e debates políticos protagonizado por lésbicas.

Sobre a construção e realização da Parada, relata Simone Brandão, 47 anos, lésbica, casada há 19 anos com Valeria Reis Siqueira, e professora do curso de Serviço Social da UFRB, bem como coordenadora do Les: “a partir das reuniões de organização da parada, que contavam com representantes dos movimentos de  Cachoeira e São Félix, estudantes da UFRB, integrantes do LES/UFRB, e militantes autônomas, definimos que a parada teria um caráter mais político e formativo. Para tanto, teríamos, além da parada em si, atividades como um seminário onde discutiríamos questões da pauta LGBT, e também um momento de exibição de filmes com a temática lésbica, seguido de debate. Também ficou definido que a parada não traria músicas de cunho machista ou misógino. A ideia também era que essa parada desse uma maior visibilidade à lesbianidade e para que isso fosse possível pensamos um seminário em que a mesa de abertura falasse da questão lésbica, já que nas outras mesas tratamos da relação entre religiosidade  e diversidade sexual  e  relatos de experiências das existências LGBTs no Recôncavo. Também idealizamos que a parada tivesse um carro/mini trio somente para mulheres lésbicas, o que não foi possível na medida em que não conseguimos junto à órgãos como prefeituras e SPM o custeio do carro. As negativas tinham por justificativa a ausência de verba para o custeamento, mas de fato percebemos a desimportância dada à causa da visibilidade lésbica  por esses órgãos”.

O Les promoveu esse ano o primeiro encontro em comemoração ao Dia Nacional da Visibilidade Lésbica em Cachoeira que foi realizado no dia 31 de agosto e contou com exibição de filme e projeção de fotografias, tendo sido estas produzidas por mulheres negras e lésbicas em situação de prisão como resultado das oficinas promovidas pelo grupo de pesquisa no Conjunto Penal de Feira de Santana, bem como roda de conversa sobre lesbianidade e uma cultural que resultou em uma pequena marcha lésbica até à praça 25 de junho. O encontro que reuniu mais de 30 lésbicas e mulheres bissexuais é um marco para a cidade que não conta com a presença de movimentos lésbicos organizados e com poucos eventos que contemplem a temática lésbica. Visibilizar lésbicas e construir espaços de trocas – intelectuais, afetivas e políticas – entre lésbicas, e também mulheres bissexuais, tem sido parte do compromisso do grupo que já realizou 11 eventos sobre a temática lésbica nos últimos dois anos na cidade de Cachoeira.

Rachel Mercês, 20 anos, lésbica e estudante, afirma que “o encontro foi um espaço potente para nós, lésbicas, que não somos reconhecidas nem visibilizadas em quase nenhum lugar. É bonito poder me reconhecer em outras lésbicas, encontrar um sentimento de pertença em meio à lesbofobia que experenciamos”.

Os espaços políticos organizados, contudo, representam só parte da luta lésbica por visibilidade. Lésbicas são invisibilizadas nos meios de comunicação – hegemônicos e alternativos – na literatura, nas produções audiovisuais, que encerram lésbicas em lugares de fetiche, nas narrativas históricas, na produção de conhecimento, nas políticas públicas, nas famílias, no mercado de trabalho e até nos dados sobre violência, o que torna a estimativa de crimes de ódio motivados por lesbofobia difícil de ser estipulada. Tanto em vida, como na morte, a existência lésbica segue ignorada por diferentes setores e grupos sociais.

“As lésbicas só são lembradas pelas próprias lésbicas. Ou a gente fala da gente mesma, das nossas questões, necessidades, demandas, seja no espaço que for, ou ninguém mais vai falar, não. Infelizmente é assim, enquanto cobram que as lésbicas lembrem e lutem por todos os grupos marginalizados da sigla LGBT, enquanto cobram que as lésbicas permaneçam em seus armários em nome de suas famílias, pela manutenção dos seus empregos, nem gays, bissexuais e trans, nem família e empregadores se importam com nós” afirma Yasmim Marinho, 24 anos, lésbica e designer autônoma, que em seu TCC realiza pesquisa sobre a invisibilidade lésbica no jornalismo online. Sobre isso diz que “as notícias sobre lésbicas são escassas e estão mais presentes nas sessões de fofoca e entretenimento do que em editorias sobre política, economia, saúde, ou seja, lésbicas são colocadas majoritariamente no lugar de espetáculo”.

Yasmim Marinho é também autora do livro de poesias Aquário, lançado em 2015 de forma independente durante a Flica, Feira literária de Cachoeira, que conta com diversas poesias lésbicas. Sobre a relação entre lesbianidade e escrita, Yasmim pontua que a escrita poética foi o primeiro espaço de expressão da sua lesbianidade. Mesmo antes de se relacionar com mulheres ou assumir-se lésbica perante à família, ela já escrevia em versos seu amor por mulheres, bem como suas angústias por estar no armário. “Eu queria falar dos meus sentimentos por mulheres, era minha válvula de escape, tanto para coisas positivas quanto negativas.Foi no processo de escrita que eu valorizava mulheres, meus afetos por mulheres, as relações entre mulheres. Através da poesia que eu entendi que era possível amar mulheres”.

Cachoeira é marcada no imaginário de parte das que aqui vivem pelos signos de tolerância e acolhimento no que se refere às questões de diversidade sexual, o que está, em partes, associado à chegada do Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL) à cidade. “Cachoeira pode ser muito mais “de boa” com relação à lésbicas do que em outros lugares, mas as crenças que moveram a agressão cometida contra mim em uma cidade vizinha são as mesmas que prevalecem em muitas cabeças aqui, a gente sabe disso. A gente sabe que a Universidade trouxe essa questão em alta para a comunidade local e que isso trouxe mais visibilidade e também resistência. Mas já existiam lésbicas visíveis aqui, mesmo que em número pequeno” comenta Fernanda Mathieu, 20 anos, lésbica e tatuadora, que critica também a falsa ideia de que lésbicas são visíveis no ambiente universitário, apontando que ainda está muito longe de ser ideal. A tatuadora comenta ter sofrido não somente agressão na rua por ser visivelmente uma lésbica, já que a mesma não é feminina, bem como assédio motivado por lesbofobia enquanto tatuava um cliente. “É aquela situação, se eu não estou segura, se não tenho espaços garantidos, se não posso existir sem ser olhada ou me sentir minimamente ameaçada, então não tá ok, né?”. Também sobre a presença de lesbofobia na Universidade, comenta Simone Brandão: “é certo, entretanto, que nossa visibilidade causa incômodos não verbalizados, inclusive entre nossos pares dentro da universidade. Os discursos lesbofóbicos se manifestam muitas vezes através da linguagem não falada, da linguagem corporal ou de atitudes, como uma vez em que um professor da UFRB em uma festa da cidade assediou Valéria na minha frente, me ignorando completamente e a nossa relação, à nossa existência, nos desrespeitando enquanto mulheres lésbicas”.

Amanda Dias, estudante, conta que passou por diferentes formas de assédio lesbofóbico enquanto residia em Cachoeira. “Existe uma constante vigilância dos nossos corpos. E ao mesmo tempo que eu não quero estigmatizar os homens negros ou reproduzir um estereótipo associando eles à violência, nesses casos [de lesbofobia], eles também são os agentes”, pontua Amanda ao narrar o assédio sofrido por rapazes da comunidade em que residia na cidade. Um deles chegou a dizê-la que “tudo bem ser lésbica, desde que fosse entre quatro paredes”. Discurso comum e violento que pressupõe que a lesbianidade resume-se ao sexo, privando lésbicas da troca de afeto e de diferentes formas de expressão, vestimenta e estética que escapem à heterossexualidade e feminilidade imposta sobre os corpos de mulheres. Como aponta Amanda, a ameaça do estupro, o estupro corretivo e as violências iminentes são processos que isolam as lésbicas e as tornam mas reclusas, limitando sua liberdade nos espaços públicos. Ainda sobre lesbofobia, Amanda que já realizou alguns trabalhos como repórter, diz que “ser uma lésbica visível no mercado profissional do jornalismo é você “disfarçar” o tempo todo até perceber que é um ambiente seguro para se abrir. É você ficar alegre e agradecida pela simples oportunidade de poder se assumir lésbica, negra, e do candomblé, embora isso devesse ser um direito”.

Iana Joaquina, estudante e designer gráfica freelancer, conta que foi em Cachoeira que encontrou outras lésbicas e mulheres bissexuais e pode se pensar enquanto lésbica e romper com a lesbofobia internalizada que nutria há algum tempo. “Foi aqui em Cachoeira que eu me assumi, que eu cortei o cabelo e pude me vestir como eu me visto. Antes eu achava que ser caminhoneira era feio. Eu tinha vergonha de falar a palavra “lésbica”, era uma palavra muito forte. Eu dizia que não me rotulava, que gostava de pessoas. Eu era assim antes de Cachoeira. Vi que lésbicas são diversas, conheci lésbicas mais velhas, outras lésbicas que era caminhoneiras, que as coisas não eram bem assim. Acho que Cachoeira talvez seja uma bolha, porque aqui andamos todas juntas, e a gente se protege”. Sobre a importância de ser visível, Iana conta que “ser visível é poder ser inspiração para outras lésbicas, principalmente as mais jovens. Tem muitas meninas que querem se assumir, mas ainda estão em um processo de amadurecimento, e poder ser uma referência para elas, verem elas virem falar comigo e encontrar em mim esse lugar de conforto é muito importante para mim”.

Ainda que não seja possível escapar das violências misóginas e lesbofóbicas que acometem lésbicas, das mais sutis às mais incisivas e violentas, Cachoeira ainda é vista como um lugar de conforto para algumas lésbicas, em destaque lésbicas brancas e inseridas nos espaços acadêmicos ou já financeiramente independentes, considerando que determinados lugares de privilégio tem historicamente garantido menor invisibilidade à algumas lésbicas em detrimento de outras. Ao longo da produção desta matéria, diferentes lésbicas, em particular aquelas pertencentes à comunidade Cachoeirana – residentes de longa data ou que nasceram aqui – e que não compõem a comunidade acadêmica, demonstram resistência em falar sobre si mesmas enquanto lésbicas e recusaram a entrevista.

A partir desse ponto, assumo a primeira pessoa, sendo eu mesma, Sarah Sanches, uma lésbica, com o objetivo de afirmar minha existência e visibilidade nesses espaços que são Cachoeira e o fazer jornalístico, mas também para apontar que nós, lésbicas, sabemos o quanto nos custa, em termos de saúde mental, segurança física e direitos nos assumirmos enquanto lésbicas em um mundo que incansavelmente nos lembra que não deveríamos amar mulheres. Sabemos também que muitas de nós tem que enfrentar, somado à lesbofobia, outras formas de discriminação e opressão e que tem a sobrevivência dos seus corpos como uma tensão e um limite constante. Sabemos que nem todas de nós falamos abertamente sobre nossas sexualidades, nossas relações com mulheres, que nem todas temos a possibilidade de militar enquanto lésbicas, de politizar nossos discursos e práticas, mas que, ainda assim, independente de como uma lésbica viva a sua lesbianidade, independente de uma lésbica se afirmar ou não lésbica, assumir-se ou não assumir-se lésbica em espaços públicos, somos todas, na medida das nossas possibilidades e na rasura social que causamos ao estarmos com outras mulheres, resistência e potência que desestabilizam a ordem das coisas. Ainda que não possamos ser, todas nós, visíveis, ainda que histórias de mulheres como Luana Barbosa, Katiane Campos, Gerciane Araújo, Thays Santos e tantas outras que tiveram suas vidas ceifadas pelas mãos masculinas da lesbofobia nos lembrem o preço alto da nossa existência, nós seguimos resistindo dentro e fora dos nossos armários em nome do amor que nutrimos e compartilhamos com outras mulheres.

Confira o projeto Lesbocídio – As histórias que ninguém conta, que registra casos de lésbicas assassinadas no Brasil, cujas mortes não são notificadas pelos meios de comunicação, nem visibilizadas em mídias alternativas e LGBT.

 

Apoie e visibilize o trampo de lésbicas em Cachoeira e São Félix

Ana Coruja – artista visual, produz cadernos artesanais por encomenda através da Alinhavos

Anastácia Flora – Fotógrafa

Boladão Lanches – Lanchonete gerida por um casal de mulheres, localizada à Rua Ana Neri, nº 9, rua que fica entre o restaurante Pai Thomaz e o Cine Theatro Cachoeirano

Fernanda Mathieu – Tatuadora

Iana Joaquina – Designer Gráfica freelancer

Mari Pontes – DJ & Fotógrafa

Sarah Sanches – Tradutora e designer freelancer, também formata e revisa textos e trabalhos acadêmicos

Yasmim Marinho – Designer Gráfica autônoma e autora do livro de poesias Aquário, disponível para venda.

 

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