Antes de ser irmã…

Quem chega na Festa enxerga as irmãs da Boa Morte apenas como devotas, mas essas mulheres têm histórias de vida que transcendem a Festa.

Muito antes de serem irmãs, são filhas, mães, alunas, trabalhadoras. As 21 mulheres que compõem a Irmandade da Boa Morte têm mais a contar além de suas inúmeras experiências religiosas dentro da instituição. Histórias da infância e as lutas da vida adulta formaram essas mulheres que hoje fazem parte de uma das irmandades mais conhecidas no país e no mundo.

 

…Uma lembrança

Em 1930 foi inaugurada a Barragem Jerry O’Connell, nome dado em homenagem ao engenheiro que a projetou, mais popularmente conhecida como Barragem de Bananeiras. Ela alimentava a Usina de Bananeiras, que fornecia energia elétrica para Conceição da Feira e região. “Eu sinto muita saudade da minha terra”. Palavras de alguém que não mais pode retornar ao seu lugar de origem: o distrito de Bananeiras (Conceição da Feira), que teve sua barragem desativada em dezembro de 1983 para dar lugar à Barragem Pedra do Cavalo.Hoje tudo é água e só o que sobra às vistas para manter as recordações é o teto de uma igreja.

Dona Ana Gilda, 66 anos, mãe de 3 filhos, avó de 4 netos, a caçula entre dezesseis irmãos nascidos no distrito e, apesar de ter se mudado para São Félix ainda criança, com 13 anos, hoje, 53 anos depois, ela é a dona das palavras de nostalgia que introduzem esta história. A região banhada pelo rio Paraguaçu e a proximidade com o pai fizeram dela amante da caça e da pesca. “Meu pai trabalhava na usina. Eu era a caçula que ele jogava no ombro e perguntava ‘você quer ir pescar mais eu?’e eu dizia que sim. Botava uma calça curtinha, uma camisa, trançava o cabelo e ia mais ele.”

Seguiam juntos para a beira do rio. O pai com uma lata de piaba, os anzóis dentro do “mocó”, hoje conhecido como “bocapio”, e ela com apenas 7 ou 8 anos. “Eu fui pescar com ele pela primeira vez e já peguei um peixe maior do que eu. Quando ele puxou, eu puxei de volta, e ainda consegui! Mas a correnteza atrapalhou. Percebi que não ia conseguir e aí gritei ‘pai!’, e ele veio correndo por cima das pedras. Botou um filho de tucunaré no anzol e soltou na correnteza e foi lá pra baixo. ‘Segure!’. Um robalo-espada. Comprido. Pesou quase 2kg. Quando chegamos em casa, meu pai ficou contando pros meus irmãos. Ele tratou e a gente almoçou aquele peixe!”

…Uma mulher de luta

O processo de ingresso na Irmandade se dá por indicação, e a relação afetiva que nasce daí é fortemente respeitada por D. Ana Gilda que chama de mãe sua intermediadora: a Irmã Zelita. 73 anos de idade, mais de 40 na irmandade e 4 indicações de irmãs das 21 que compõem a formação atual. Filha de operários, Dona Zelita trabalhou em várias áreas, já foi: funcionária em salão de beleza, operária na fábrica de charuto Suerdieck, cozinheira e lavadeira, operária de uma fábrica de fumo em Muritiba, vendedora de frutas e de mingau, cuscuz e lelê.

Mãe de dois filhos priorizou sempre o seu bem-estar, e por isso decidiu pela separação e enfrentou o desafio de criar os filhos sozinha. Conseguiu seguir os estudos apenas até a oitava série do ensino fundamental II, atual nono ano, mas se enche de orgulho para dizer que isso não a impediu de formar seus dois filhos e netos em cursos do ensino superior.

Em um encontro da irmandade com a então presidente Dilma Rousseff em 2016, Dona Zelitafezo pedido de uma van para auxiliar no transporte das irmãs por conta da dificuldade de locomoção. Infelizmente a promessa da compra da van não pôde ser cumprida por conta dos acontecimentos políticos do momento.

…Uma promessa de fé

Mas, antes de louvar toda uma vida na Irmandade como a Irmã Zelita, que já passou por todos os postos da comissão da Festa, as Irmãs de Bolsa, nome referente às recém chegadas, têm que, além de atender às exigências padrão como a de ter pelo menos 45 anos, passar por um período de apreciação, em que as outras irmãs observam se seus hábitos e comportamentos condizem com a seriedade do grupo. Uma das irmãs iniciadas é Dona Cleuza Maria, de 61 anos, e há três, é irmã de bolsa.

Dona Cleuza conta que entrou na Irmandade da Boa Morte após um chamado de Nossa Senhora quando, há 10 anos, a irmã Adeildes a convidou para fazer parte do grupo, mas o convite não foi aceito de imediato, pois D. Cleuza deixou o plano para quando se aposentar, já com bastante idade, para ter um lugar para “passar o tempo” e descansar. Nesse momento ela recebeu um chamado de que a Irmandade não seria um lugar de descanso, mas sim, de adoração. Sete anos depois, D. Cleuza estava no Hospital Manoel Vitorino em Salvador, onde trabalhava como enfermeira, quando recebeu uma ligação da Secretaria de Saúde e a notícia de que não fazia mais parte daquele quadro de funcionárias, pois estava aposentada. E finalmente, em agosto de 2014, Dona Cleuza se apresentou na Irmandade, foi aprovada e está sendo apreciada, fazendo parte da comissão da Festa como escrivã.

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