Sensibilidade, arte e juventude: o que a música tem a ver com a gente?

Sued Nunes, Rafique Nasser e André Fonseca: cantores jovens, negros e de diferentes cidades do interior baiano contam sobre suas experiências musicais e sua potência de transformação

Kathleen Ribeiro

Em 2021, os artistas tiveram suas produções musicais aprovadas pelo Programa Aldir Blanc Bahia (Fotos da esq. para a dir.: Ellen Katarine | Adrielly Novaes | Lorraine Ferreira)

Desde que o mundo é mundo, a música envolve a humanidade. Seja através de ritos comemorativos, cultos ao sagrado ou expressão de sentimentos, o conjunto de melodias e compassos fala sobre nossas histórias e pode, com sua harmonia, alcançar espaços e mobilizar vidas. A música, assim, está presente também em momentos de crises e atua como instrumento de enfrentamento. 

Para a psicóloga Fernanda Souza, a música tem o poder de tocar emocionalmente as pessoas e ser abrigo; e ressalta ainda a importância de sua utilização como recurso terapêutico nos últimos dois anos de pandemia. “A música pode te fazer ir para outro lugar, fugindo talvez do real. Não tem como fugir disso, não temos controle sobre isso. Então, faz com que não se lide, exatamente, com esse real que é a pandemia, a própria doença, por exemplo, e você tem ali um momento de se encontrar no seu refúgio e a música pode ser sim esse refúgio”, explicou.

“A música é a forma que eu tenho de me conectar com as pessoas, de falar sobre o que eu acredito, de me fazer gente, de me colocar no mundo. A música é a língua que eu aprendi; pra mim é uma das formas mais bonitas de comunicação”, disse o cantor Rafique Nasser.

Filho de Valença, baixo-sul da Bahia, o cantor Rafique Nasser destacou a ampla capacidade comunicacional que a produção de música tem no cotidiano. “Ao mesmo passo que a música pode falar sobre uma realidade social muito dura, pode lhe tirar do plano e lhe transcender pra um sagrado. Ao passo que tem canções que fazem meter dança com a galera, tem canções que você quer ouvir em casa sozinho, refletir. Então, a música é uma sabedoria humana completa”, afirmou ele.

O cantor intitula a música como contadora da realidade, hábil para fazer com que que assuntos sensíveis cheguem nos corações e criem um ambiente de reflexão. Como manifestação dos povos, ela é vivenciada e ensinada para ser um alimento da consciência, a fim de fortalecer o espírito. “Você ouve uma que você gosta, que se sentiu tocado e você vai passar pra alguém. E essa coisa vai se espalhando; veja, é como plantar sementes. A música tem essa beleza.”

Rafique enxerga na música um presente ancestral que é passado através do tempo e das pessoas (Foto: Martins Neto)

Identidade

“No percurso eu entendi que a música era como se fosse um chão e que eu precisava cantar sobre não só quem eu era, quem eu via, mas sobre quem veio antes. E aí cria um resgate das minhas memórias com minha avó, o quintal da roça, minha mãe dentro de casa cantando Olodum pra me acordar num sábado”, disse a cantora Sued Nunes.

Ao relembrar sobre seus contatos iniciais com a música, a cantora Sued Nunes, natural de Sapeaçu, no Recôncavo Baiano, contou que durante seu processo de desenvolvimento, tocar, cantar e compor foram cruciais para que ela pudesse falar de onde vinha, se reafirmar diante da sociedade e enfrentar o racismo. “Na adolescência eu tive esse contato com a mudança do cabelo. E aí eu comecei a jogar minha escrita nesse viés. Eu falei: ‘vou cantar sobre cabelo, sobre cor de algum jeito aqui pra mim’. E aí quando as pessoas ouviam isso de volta, já tinham essa relação de identidade. Da adolescência pra fase adulta, foi uma forma de me encontrar enquanto escritora, poder falar sobre mim de uma forma mais política”, disse.

 A música se manifesta, então, também como ponte de conexão entre as pessoas e destaca a potência das raízes ancestrais, como continua Sued: “a música é uma linguagem universal. Você ouve meu álbum Travessia, por exemplo, e eu não preciso fazer um bate-papo com você que minhas origens são africanas, que eu acredito nos tambores, na força da minha fé ancestral. Eu acho isso muito importante e eu não sei se falando o que eu falo nas músicas, as pessoas me ouviriam, mas tocando e cantando se faz um passo no caminho.”

Sued conta que é tocada pela música a partir de suas memórias afetivas (Foto: Gabriela Palha)

 Já o cantor André Fonseca, de Lençóis, na Chapada Diamantina, vendo o próprio reflexo no espelho para ensaiar suas performances musicais, encarou o medo por muito tempo até que pudesse, de fato, perceber a potência de seu canto e de quem ele poderia ser. “Eu tinha muito medo de fazer aquilo que eu fazia para o espelho. Era quem eu era, mas talvez para as pessoas fosse muito errado; o jeito de gesticular, o jeito de cantar. Eu tinha medo de me colocar e perceber quem eu era de verdade”, afirmou ele ao falar sobre sua relação com a musicalidade enquanto homem negro e LGBTQIA+.

“A minha relação com música começa quando eu achava que eu não podia e a partir de então ela se tornou um ingrediente fundamental na minha vida.  Música pra mim é um lugar onde eu posso ser quem eu sou”, avaliou o cantor André Fonseca.

Durante a caminhada de autoconhecimento, se propor à música se tornou algo para além do que ele gostava de fazer e se mostrou como dispositivo de cura. Quando se sentia silenciado, o cantor relata que encontrou na música sua forma de falar, se expressar e que precisou estar aberto para isso. “A música tem essa potência, né? De Atravessar, emocionar, dar um choque de realidade. Então, se eu canto e minha música chega em outras pessoas, isso é muito importante. A pessoa precisa permitir que a música chegue até ela e que ela possa sentir alguma coisa. Você está aberto pra sentir? Porque música é sentimento, é abertura”, comentou ele.

André acredita na força potencial da música em direção à libertação e união (Foto: Lorraine Ferreira)

 Distanciamento

Em 2021, os cantores lançaram seus produtos musicais por meio do Programa Aldir Blanc Bahia. O clipe Refúgio Particular de André Fonseca, álbum Travessia de Sued Nunes e EP Conto Lamento de um Rio que Secou de Rafique Nasser tiveram seus processos de produção modificados devido a pandemia da Covid-19. Com maiores restrições e divulgações feitas pela internet, os artistas comentam sobre a experiência de adaptação e a vontade de compartilhar a arte com outras pessoas afora.

“Esse momento de pandemia foi difícil por querer viver a rua, querer viver uma música nova, um álbum novo com várias pessoas e sentir a vibração, mas também a música foi um suporte, um amuleto pra não estar sozinha nesse momento onde a gente tem que estar afastado de tudo”, contou Sued, que teve sua equipe de músicos reduzida para três pessoas durante a gravação do álbum, a fim de cumprir os protocolos no estúdio e fazer seu som em segurança.

Para Rafique, houve a perda de seu ambiente natural de trabalho, visto que usualmente há a colaboração coletiva e envolvimento de diversas pessoas no processo. Mas, mesmo com o afastamento físico entre equipe e público, o cantor comentou sobre a facilitação das redes nesse momento. “Conheci muita gente nova nessas de Instagram; alguém lançou aqui, e aí vamos conversar, ‘amei seu disco’ e a gente se conhece, vira amigo e doidos pra se conhecer depois da pandemia. É que a música tem essa capacidade, né? De unir as pessoas de fazer com que a gente se sinta mais próximo do outro”, disse ele.

André afirma que nessa fase se questionar sobre como poderia continuar produzindo arte e, posteriormente, agir nessa direção foi necessário para que ele pudesse se reestabelecer e reorganizar. “O clipe de Refúgio Particular é de uma música que eu escrevi há sete anos e é sobre ancestralidade, pertencimento, sobre a vivência e potência de ser uma pessoa interiorana. De lá pra cá teve um pontinho de cada pessoa que eu conheci durante esse processo todo que foi me fortalecendo”.  O cantor acredita que a música foi um instrumento fundamental para que as pessoas não se perdessem de si mesmas durante o isolamento.

Papel transformador

A potência da música é inegável e ao longo da história esteve presente em momentos cruciais para o Brasil. Rafique Nasser diz que através da música o artista tem o dever de refletir sobre seu tempo e sociedade. “Vai pegar a obra de Adoniran Barbosa, Bezerra da Silva, Racionais MC’s, Luiz Gonzaga é um exemplo genial, porque todas essas pessoas, essas obras são gritos coletivos e a música tem a capacidade de fazer esses gritos ecoarem. De fazer com que a realidade de muitas pessoas seja colocada na ordem do dia”, afirmou o cantor.

Ao falar sobre a relevância da produção de música para a juventude, André Fonseca pontua que a arte e seus atores são agentes multiplicadores capazes de construir outras alternativas às mazelas sociais. “Aqui em Lençóis tem uma realidade muito dura que é a questão do tráfico entre jovens e a gente percebeu com os projetos sociais que estava sendo muito importante pra retirar esses meninos desse mundo através de arte, da música […] Você via outras aparências, outros meninos e meninas, muitos talentos.”

E diante da grandiosa afetação dessa arte que mexe, desloca e transforma os sujeitos, Sued Nunes nos relembra que música transcende as técnicas. “Eu não acredito numa música que é só som. Eu acredito numa música que é espírito. Pra mim a música é espiritual e ancestral. Não adianta você estudar sobre música se você não sentir o que tá acontecendo, se você não entender que ela é espírito e que você precisa trabalhar com o coração. Não só com os dedos, não só com a voz”, afirmou ela.

 

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Chegou até aqui? Acompanhe também as produções dos cantores e acesse as redes sociais:

Clipe ‘Refúgio Particular’ – André Fonseca (IG: @oxfonseca)

Álbum ‘Travessia’ – Sued Nunes (IG: @suednunes)

EP ‘Conto Lamento de um Rio que Secou’ – Rafique Nasser (IG: @rafiquenasser)

 

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