A Festa da Boa Morte pelo olhar do outro: o que leva turistas e moradores locais a comparecerem à celebração?

A cada ano, a cidade de Cachoeira recebe milhares de visitantes para acompanhar a tradicional Festa de Nossa Senhora da Boa Morte. Mas qual é o principal motivador que levam os turistas a se deslocar de suas cidades para participar da Festa?

Comemorando 236 anos, a festa de Nossa Senhora da Boa Morte em Cachoeira é uma das celebrações religiosas que mais elevam a circulação de visitantes à cidade. Recebendo em média 30 mil pessoas, não é difícil encontrar diversos anúncios em sites especializados em turismo sobre o quão bela é a comemoração pela Assunção de Maria, enaltecendo sempre o caráter ligado ao sincretismo religioso, à etnicidade, resistência e folia presentes nesse Patrimônio Imaterial da Bahia.

De turistas aos moradores locais, olhares curiosos percorrem sobre às vestes das mulheres negras, que fazem parte da Irmandade da Boa Morte, o seu samba, à comida oferecida por elas e pelas cerimônias sagradas. Cada um com o seu jeito particular de enxergar a festa, frases são entoadas a todo canto – sejam positivas ou negativas. Em meio a multidão que espera a procissão sair da Capela da Boa Morte, uma senhora, cachoeirana de nascença, baixinha e de cabelos curtos, indaga sobre a necessidade de tantos seguranças na frente da Irmandade.

“Nossa, pra que isso mesmo? Passa ano e a festa vai se tornando mais restrita, mais ‘pra gringo’. Antigamente não tinha essa besteira de segurança.”

Essa é somente uma das opiniões proferidas sobre a festa e sendo uma manifestação conhecida por todo o Brasil e pelo mundo, alguns questionamentos podem ser feitos: o que os moradores locais e turistas procuram na festa? Como eles enxergam a comemoração? E o porquê deles comparecerem à ela? Os visitantes, principais interessados na celebração, demonstram motivações que são divergentes, entretanto, se aproximam em alguns aspectos divididas em seções abaixo.

A PROMESSA

Motivações religiosas ou, de alguma forma, ligadas à fé são comuns de se encontrar entre os participantes devido à forte relação que as mesmas tem com a origem da festa. Dona Carmen, soteropolitana e candomblecista, participa da comemoração faz cinco anos por causa de uma promessa feita pelo seu marido. “Ele veio trazer alguém e, no dia, eu estava fazendo a cirurgia (porque eu infartei). Aí, ele pediu que se eu ficasse realmente boa, enquanto viva eu estivesse, a gente vinha pra Cachoeira para a Procissão de Nossa Senhora da Boa Morte”, disse, emocionada.

Segundo ela, desde o dia da promessa, ela e o seu marido comparecem à procissão no dia 15 movidos pela fé e por serem gratos à Santa.

Essa é a que a gente tem, que traz a gente. Então enquanto eu existir e Deus, os meus santos e meus orixás me derem saúde, eu venho pra festa de Cachoeira. É pra Cachoeira, é pra Nossa Senhora da Boa Morte. Muita fé, muito bonito, é lindo, então tem que vir porque quem não vem só perde.

Carmen Coelho

Apesar de se manter fiel à sua promessa, Dona Carmen não conhece muitos aspectos sobre a tradição e o porquê dos festejos acontecerem – algo muito comum até mesmo para moradores da cidade. “Eu não sei muito da tradição, a gente só vem mesmo por causa dessa promessa. Já tem uns cinco anos que a gente acompanha a procissão, agora assim falar ao fundo eu não sei direito”, explica.

RAÇA, ETNICIDADE E HERANÇA

O fato da Irmandade ser constituída apenas por mulheres negras, mesmo em uma sociedade racista e misógina, enaltecendo aspectos da cultura e resistência negra, leva diversas pessoas que se identificam com o legado étnico a conhecerem a festa. Esse é o caso de Adna Rodrigues.

Designer gráfico e afro-empreendedora, ela participa de duas associações culturais e carnavalescas de Salvador: Afoxé Kambalagwanze e Afro Ginga do Negro. As associações trabalham para a reafirmação e revitalização dos conceitos culturais de matriz africana através da manifestação carnavalesca, de forma contemporânea e preservando as tradições nas danças e movimentos, além de ações afirmativas para jovens negros de comunidades periféricas.

Devido a uma ação das duas organizações, ela comparece aos festejos todo ano. “Desde quando eu trabalho com elas, que são associações formadas só por mulheres, a gente vem todos os anos. A gente faz uma excursão de Salvador pra cá, para acompanhar a Festa da Boa Morte por causa da tradição de acompanhar as nossas velhas”, explica.

Quando ela cita as “nossas velhas”, é uma referência às Irmãs da Boa Morte que Adna reconhece como suas ancestrais por causa de suas vivências enquanto povo negro, indo de encontro também com o seu trabalho social nas associações.

É uma festa muito voltada para a mulher negra, que é o trabalho que a gente faz lá em Salvador, que é muito voltada pro nosso pessoal. Então, todos os anos, no dia 15, a gente sai de Salvador e vem pra cá para poder vir pra festa.

Adna Rodrigues

Adna, que conhece o significado da celebração, pretende passar os ensinamentos e a tradição para a sua filha de 3 anos. “É uma coisa que eu quero passar pra ela, porque é a nossa cultura né… Antes de olhar e de conhecer as outras culturas de outros estados, eu tenho essa intenção de conhecer as culturas daqui da Bahia porque a gente tem que dar valor”.

TURISMO RELIGIOSO

Pelo fato da manifestação ser afro-católica, igrejas de todo o país fazem excursões para pessoas religiosas comparecerem às procissões e missas na Capela da Boa Morte e na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário. Seu Reginaldo, católico, mecânico e soteropolitano, sentado no Jardim do Faquir, estranha o número de pessoas presentes na cidade. “Ah, tô achando boa (a festa), apesar de que tá esquentando agora. De manhã o movimento estava fraco, mas da hora que eu cheguei até agora já aumentou muito. Mais de cem por cento do que eu encontrei aqui”.

Apesar de já ter andado pelas bandas do Recôncavo e ter passado algumas vezes por Cachoeira, vem pela primeira vez para os festejos.

(Eu) vinha de ônibus, saía de Cruz das Almas pra Salvador… Todo mês eu passava aqui, então eu já conheço isso desde 64. É a primeira vez que eu venho pra festa, mas aqui em Cachoeira eu já passei várias vezes, mas de passagem.

Reginaldo de Souza Santos

 

CACHOEIRANOS E A SUA VISÃO DA FESTA

Sendo parte da cultura da cidade da Cachoeira, as celebrações de Nossa Senhora da Boa Morte são esperadas ansiosamente pelos moradores – seja pelo samba, pelas comidas distribuídas, pelas cerimônias de cunho afro-católico. As ruas principais são invadidas pelos cachoeiranos, que comparecem ou até mesmo passam pelo circuito da festa.

A partir de relatos colhidos ao longo do segundo dia de celebração identificamos, porém, alguns moradores que não participam da festa ativamente por dois motivos gerais – o não-conhecimento acerca da tradição e do seu significado cultural e religioso, além de sentirem que a festa não é direcionada ao povo de Cachoeira.

Eu ouço falar que é mais para os americanos, os angolanos, né… que eles são mais participativos nessa festa. O povo acredita que é feito pra eles, mas (…) muita gente não tem conhecimento do assunto, então falam porque eles são maioria que vem pra prestigiar a festa, mas claro que a parte profana é para todos.

Romildo “Nildo da Carroça” dos Santos

Segundo Romildo, mesmo que a tradição seja passada “de mãe pra filho”, os cachoeiranos não tem um conhecimento maior sobre a comemoração. “Eu curtia mais a parte profana da festa, ia pro caruru, pro cozido, pra festa à noite”, finaliza. Da mesma forma, o vigilante Luciano Souza Santos, declarado como “filho de Cachoeira”, nunca soube o verdadeiro significado dos rituais que são realizados.

Eu não sei dizer nada sobre a Boa Morte, nada, nada, nada. Eu queria entender mais dessa festa porque, até hoje, não entendo direito. Pra você ver, nem quando eu estudava no primário nunca falaram sobre a Boa Morte. Hoje a festa é mundial, que vem gente de fora. Se no nosso calendário estudantil nunca falou nada, como a gente vai saber de alguma coisa? A gente sabe até mais coisa de fora do que da própria Boa Morte.

Luciano Souza dos Santos

Ao mesmo tempo em que alguns moradores não se sentem inseridos nos festejos, há quem reconheça a importância da integração com pessoas de outras localidades. “Eu acredito que a festa da Boa Morte é uma manifestação cultural necessária, tanto pra quem é de dentro da cidade quanto pra quem é de fora”, disse o estudante Lucas Mascarenhas.

Para ele, a festa tem um significado acima da parte mundana, celebrando também a resistência de toda uma cultura étnica.

Toda guerra, toda luta das pessoas negras que aqui viveram é mostrada nessa festa que não é só a parte profana, temos também a parte religiosa que, por sinal, é a parte mais bonita da festa e que deveria ser mais apreciada.

Lucas Mascarenhas

 

Foto: Camilla Souza 

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