Abutres Sociais

O sensacionalismo e a falta de ética são práticas deletérias que ganham um maior poder destrutivo com o crescimento das redes sociais

Luís Henrique Silva Pitanga

Ao acordar na manhã de 26 de junho, ainda meio sonolento, peguei meu celular e entrei no Instagram onde me deparei com uma postagem sobre Léo Dias. Não dei a devida atenção. Achei que se tratava de mais uma das suas tretas com algum famoso. À medida que mais publicações com o mesmo tema foram aparecendo, decidi pesquisar sobre o que se tratava. Foi quando me choquei.

No sábado (25), a atriz Klara Castanho publicou nas suas redes sociais uma carta aberta onde revelou ter sido vítima de estupro que resultou em uma gravidez e que, após o parto, entregou a criança para adoção. A carta também dizia que um certo colunista descobriu a história e prometeu não divulgá-la. Entretanto, a história começou a se espalhar nos bastidores das celebridades, o que motivou Klara Castanho a pronunciar-se publicamente. 

Logo após o pronunciamento, Léo Dias, através do portal Metropoles, fez uma publicação intitulada “Estupro, gravidez indesejada e adoção: a verdade sobre Klara Castanho”. Nela, além de expor o nome da atriz, divulgou dados da criança, incluindo hora e local de nascimento. A partir disso, ficou evidente que o colunista mencionado na carta era o Léo Dias, o que foi confirmado posteriormente quando, em um pedido de desculpas, admitiu que se tratava dele.  

Todo esse caso me deixou indignado. Tive que dar algumas pausas durante a leitura da matéria, pois fiquei enojado com essa atitude de um jornalista. Admito que não li o pedido de desculpas, eu já estava esgotado e sem paciência de ouvir mais um jornalista de comportamento antiético desculpando-se após a pressão popular. Não me parece uma atitude sincera, conhecendo o histórico de polêmicas em torno da exposição da vida privada de famosos, incluindo diversas acusações por calúnia. Tentei digerir o episódio durante o dia, mas não consegui, na verdade, neste exato momento ainda não consegui. 

Tudo isso me fez refletir sobre a ética jornalística. Minha paixão pelo jornalismo surgiu na infância. Enquanto a maioria dos meus amigos aproveitava a noite de domingo jogando videogame ou assistindo filmes, eu preferia ver, junto com meus pais, o programa Fantástico. Ao assistir as reportagens, era perceptível o cuidado e empenho na produção, trazendo sempre conteúdos abrangentes e relevantes para todos, como as questões de segurança pública, saúde e vigilância sanitária. 

Quando jovem, ainda ingênuo, acreditava que todos os jornalistas eram profissionais comprometidos em publicar notícias de relevância social. Conforme fui envelhecendo e tendo acesso a variados jornais impressos e telejornais, percebi que muitos deles, na verdade, tinham o comprometimento em aumentar cada vez mais o seu público,   mesmo que para isso apelasse para o sensacionalismo na produção das matérias. Nunca fui uma pessoa interessada em programas e sites de fofoca, muito menos em telejornais que só vivem de explorar midiaticamente acidentes e crimes. Eu simplesmente ignorava esses tipos de jornais. 

No colégio lembro de algumas amigas falando que por serem fofoqueiras dariam ótimas jornalistas. Jovem e imaturo, eu entrava na onda das piadas e dava risada também. Hoje eu percebo a gravidade desse estereótipo para a profissão que escolhi seguir. Ser jornalista é ter comprometimento com a sociedade, contribuir diariamente no fortalecimento da democracia. É um casamento eterno com a verdade, respeito e empatia. O jornalista Léo Dias, ao invadir e publicar coisas sobre a intimidade alheia, violou a lei e desprezou valores humanos como a empatia e o respeito ao próximo. 

Em meio aos abutres 

Há dois anos assisti ao filme estadunidense O Abutre, com o renomado ator Jake Gyllenhaal. Sem saber ao certo o enredo, fui ver o filme, pois sou muito fã dele. O personagem principal, Louis Bloom, é um cinegrafista amador que passa horas ouvindo transmissões policiais, normalmente à noite, com o intuito de saber onde há crimes e acidentes para filmar. As suas filmagens, exclusivas e repugnantes, despertam o interesse de uma grande emissora de televisão que passa a comprar e exibir as filmagens no jornal. As filmagens, bárbaras e muitas vezes repulsivas conquistam um público sedento por sangue. Bloom passa a vender cada vez mais vídeos, melhorando muito sua condição financeira, e começa a construir uma empresa de filmagem focada em registrar acidentes e crimes. 

O filme me causou a sensação de um soco no estômago. Fui assisti-lo na intenção de me divertir e esquecer um pouco do mundo, mas recebi um reflexo da realidade de um mundo dominado pelo maior câncer da humanidade, a ganância.  

Os abutres são aves necrófagas que tem como principal fonte de alimento cadáveres de animais.  Recordo-me da época em que viajava de carro com meus pais e em algumas ocasiões me deparei com urubus na pista ou pendurados nos postes. Foram experiências assustadoras para mim. Apesar de compreender a importância dessas aves para todo um ecossistema, sempre tive temor e repulsa delas, sentia constantemente uma sensação de ameaça quando estavam por perto. Tinha medo que fosse o meu corpo nas pistas servindo de alimento para aquelas criaturas.

Os jornalistas sensacionalistas são abutres sociais que se alimentam da desgraça alheia, devoram a dignidade e a reputação de pessoas mortas e vivas, extraindo o máximo possível do indivíduo para produzir conteúdos asquerosos.    

Certo dia, lendo um artigo, deparei-me com a afirmação do grande empresário de jornais dos EUA, William Randolph Hearst (1863-1952), dizendo que “se algo sangra, vende”. Trazendo para o contexto das notícias de fofocas, os jornalistas desse tipo de conteúdo sempre estão à espera de conseguir informações polêmicas da vida das celebridades. Dessa forma, equiparam-se a abutres, esperando pelo sangramento da reputação das celebridades, carniceiros que utilizam da vida alheia para alavancar suas vendas e audiência.   

“Canibais, esperando minha derrota, querem tirar minha paz. Canibais, só enxergam a vitória quando matam seus iguais”. O trecho da música “Canibais” do Rapper Duzz se encaixa perfeitamente com tudo que foi dito. As atitudes de Léo Dias escancaram a crueldade e canalhice de uma parte da imprensa brasileira, abutres que pela ganância, assassinam a ética. Revolta-me perceber que essas atitudes são motivadas por uma parcela da sociedade sedenta por esse tipo de conteúdo fútil. Entretanto, ao ver muitas pessoas repudiando esse tipo de conteúdo, criticando incisivamente as atitudes sensacionalistas dos jornais, suspira em mim uma esperança de no futuro presenciar uma imprensa mais pura, mais ética.

Ontem mesmo, antes de dormir, fui tomado por uma grande saudade da minha juventude, época em que eu simplesmente escolhia não dar atenção aos conteúdos sensacionalistas, fingia que não existia. Hoje, como estudante do curso de Jornalismo, entendo que eu não posso simplesmente fechar ou desviar os olhos, como se aquilo não existisse. Devo enfrentar meus medos, não posso me amedrontar perante aos abutres. Tenho a obrigação de observar e me posicionar de forma veemente contra atitudes que mancham o jornalismo  e violam  os direitos dos cidadãos.