Tem caboclo querendo sambar

Episódio vivenciado em uma tarde fria de domingo, em São Félix: festa de caboclo com muita bebida, charutos e um mistério ainda sem solução

Weverton Dantas

“Ele só vem quando Ciara chegar”, gritava mãe Itamara sentada em uma cadeira de madeira em frente à casa do caboclo Pedra Lisa, onde Léo – o responsável por hospedar a divindade  –  esperava impaciente. No terreiro, os demais também aguardavam ansiosos por Pedra Lisa, mas Ciara havia atrasado. 

Por aqui calha contextualizar: Ciara é a mãe-pequena do terreiro onde acontece a festa em celebração à Pedra Lisa e Itamara é a mãe-pequena da casa de candomblé de Rogério. Esse último, por sua vez, é irmão de Léo e também babalorixá, além de recepcionar os caboclos Sultão das Matas e Pena Branca. Com todos devidamente apresentados, vamos ao episódio. 

 Eu havia passado o final de semana na casa da minha mãe, lá em Santo Amaro. Na quinta, estive na parte privada da festa e prometi para Pedra Lisa que retornaria apenas no domingo, por questões relacionadas ao ofício. Assim fiz: apesar do dia frio, saí de casa às onze horas da manhã e percorri os quarenta e dois quilômetros que ligam a cidade de Santo Amaro à São Félix. O tempo estava chuvoso e, fatalmente, além de me molhar, também me atrasei. Ao chegar no espaço, estranhei o silêncio nada comum àquele tipo de festejo. O que tínhamos no terreiro eram apenas conversas dispersas e um marasmo sem fim. Pouco tempo depois, já tinha conseguido me situar: Pedra Lisa só ia montar no seu cavalo – ou seja, a pessoa que recepciona a entidade no seu corpo – depois da chegada da atrasadíssima Ciara. 

A inércia imperava em todos os presentes, mas se dissipou assim que a mãe-pequena, enfim, entrou no terreiro. Já estava tudo pronto: havia sido providenciada uma reforma no barracão externo, justamente para a festa daquela tarde. Todo o salão estava decorado com folhas de dendê e os Ogãs estavam prontos para tocar.  

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“…Devagarinho eu plantei a cana, devagarinho a cana cresceu, devagarinho eu fiz a cachaça, devagarinho quem bebeu fui eu”, era o que entoava os vigorosos gogós pelo terreiro quando o dono da festa chegou. Então, subitamente, os atabaques pararam e Pedra Lisa foi se arrumar no Sabagi. Voltou com uma roupa integralmente branca e um penacho igualmente alvo. O penacho é como um cocar, um resquício dos indígenas que já passaram pela Terra e de quem os caboclos são espíritos. Pedra Lisa, porém, não é muito afeito a adornos muito grandes, sobretudo quando estes são carregados de penas, por isso, logo providenciou a retirada do mesmo, que o incomodava. No entanto, antes da remoção, chamou os caboclos dos seus filhos-de-santo. Após a convocação de cada um dos caboclos de sua prole, todos começaram a dançar e cantar pelo barracão. 

Um caboclo, em especial, faltava dar o ar da graça no salão: Sultão das Matas. Ele era tão importante quanto Pedra Lisa no candomblé dos irmãos, e, depois dele chegar e vestir sua roupa verde e vermelha, todos cantaram para a sua entrada. “… Arreda arreda do caminho que Sultão das Matas quer passar”.

Depois de dançar e cantar bastante, algo engraçado aconteceu: sentei-me na parte de dentro do axé e uma pena vermelha do penacho de Sultão veio em minha direção. Eu olhei pra ele sem reação e ele me encarou com um olhar que parecia dizer: “Se essa pena foi na sua direção é por que tem algum motivo”, mas ninguém sabia exatamente o quê. Tínhamos ali um enigma que precisava ser resolvido, ou que devesse ficar na dúvida também, como saber se o gato está vivo ou morto na teoria de Schrödinger. Talvez esse mistério fosse resolvido mais adiante, em outra festividade. Naquele momento, a gente iria se dedicar apenas àquele festejo – e nisso, Pedra Lisa concordava. Ele continuou dançando e bebendo pelo terreiro, e por falar em bebida é disso que os caboclos gostam.  

Os convidados dispunham de cerveja para beber à vontade e outros etílicos diversos: uma cachaça mais forte que a outra. Pedra Lisa, gentilmente, me ofereceu uma dose de gin de gosto muito forte. Apesar de ficar enjoado com a degustação, me mantive sereno, já que acho uma grosseria rejeitar bebidas, sobretudo de alguém tão cortês quanto Pedra Lisa

O mix de bebidas recendia um cheiro forte, curiosamente misturado ao odor dos charutos que os caboclos comumente fumegam. O dia continuava frio, choveu em alguns momentos, mas nada que esmorecesse os presentes. 

 E foi assim que se deu aquele domingo, com muita bebida, dança, charutos e muito canto em celebração aos caboclos, além de uma pena e um enigma (a se resolver) como uma lembrancinha.