Entrevista: dona Dalva fala sobre a trajetória na Irmandade da Boa Morte

Doutora honoris causa pela UFRB, personalidade cachoeirana é parte do patrimônio cultural e uma das matriarcas do samba de roda do Recôncavo da Bahia.

Por Klêisila Carneiro.

Sambadeira, liderança do grupo de Samba de Roda que leva o próprio nome, doutora honoris causa pela UFRB e integrante da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte. Dalva Damiana de Freitas, conhecida como dona Dalva, é uma das principais personalidades do Recôncavo da Bahia. Nascida na cidade de Cachoeira, em 27 de setembro de 1927, dia dos santos Cosme e Damião, dona Dalva celebra o aniversário cozinhando e servindo caruru para amigas e admiradoras da trajetória da matriarca.

Dalva Damiana foi operária na fábrica de charutos Suerdieck, instalada no território no final do século XIX. Enquanto era charuteira, Dona Dalva, amante do samba, criou o Grupo de Samba de Roda Suerdieck. A ideia do nome veio, principalmente, do fato de que a roda de samba começava nos fundos da fábrica de charutos, quando as charuteiras terminavam o expediente. 

Complexo industrial da Suerdieck, fabricante de charutos, após a ampliação de 1921, se localizava no centro de Maragogipe (BA)1 (acima). Passadiço da Fábrica Suerdieck, em Maragogipe, em 2012. Foto: Luciana Guerra.

Dona Dalva afirma que a jornada na Irmandade da Boa Morte começou ainda na infância, quando acompanhava a avó, que exerceu todas as funções que integram a irmandade. De acordo com dona Dalva, a irmandade é uma religião de fé e respeito, e ela sente prazer em ver o reconhecimento que as irmãs possuem hoje.

Dona Dalva é cantora e compositora de samba. Hoje, o grupo que fundou é conhecido como Samba de Roda Dona Dalva e participa de vários festejos. A festa da Boa Morte, realizada em Cachoeira, é tradicionalmente encerrada com a apresentação do grupo. Em 2012, recebeu o título de doutora honoris causa pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). 

É possível afirmar que a personagem da entrevista desta edição do dossiê Reverso faz parte do patrimônio histórico artístico cultural de Cachoeira, da Bahia, do Brasil e da humanidade. Isso porque a vida de dona Dalva serviu de inspiração para o registro do Samba de Roda como patrimônio cultural do Brasil e patrimônio cultural imaterial da humanidade. Da mesma forma, a Festa da Boa Morte é salvaguardada com o registro de patrimônio imaterial da Bahia. Além disso, o samba de roda de Cachoeira e a Associação Dalva Damiana de Freitas são reconhecidos como parte do patrimônio cultural imaterial do município.

Samba de Dona Dalva foi realizado durante abertura de exposição sobre as sambadeiras, em Cachoeira, em setembro deste ano. Foto: Luis Pitanga (esq.). A Festa da Boa Morte é reconhecida como patrimônio cultural imaterial da Bahia pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (IPAC). Foto: Klêisila Carneiro

A edição 2023 do dossiê Reverso temático sobre Território e Identidade conversou com dona Dalva sobre a trajetória de vida e a relação da matriarca com a Irmandade da Boa Morte.

Dona Dalva, como a senhora se iniciou na Irmandade da Boa Morte?

Comecei por causa de vovó. A minha avó fez parte da Boa Morte, ela saía com uma bolsa pedindo ajuda para realizar a festa, e eu criança ia junto. Com as doações elas conseguiam realizar os festejos e a comida. Eu, criança, ia só para comer caruru. 

Como fazer parte da Irmandade? 

Tem todo um processo, é como se fosse um estudo mesmo. É importante que você tenha familiar fazendo parte da Irmandade da Boa Morte, porque a irmandade vem dos ancestrais. A pessoa que quer fazer parte da Boa Morte precisa ter fé, acompanhar as reuniões, as missas, entender a parte religiosa e a fé, ter respeito pelos mais velhos. Na Irmandade da Boa Morte tem cinco cargos: escrivã, tesoureira, procuradora geral, provedora e juíza perpétua. Vovó ocupou todos os cargos. Eu só ocupei quatro. Não fui juíza perpétua.

Dona Dalva é neta de Vicência Ribeiro da Costa, que foi juíza perpétua da Irmandade da Boa Morte. Foto: Silvia Leme

O que a Irmandade da Boa Morte significa para as mulheres que fazem parte? 

A Boa Morte é uma religião de fé e respeito, ela é muito considerada pelos antigos. A gente precisa preservar a irmandade enquanto estamos vivas. Precisamos resgatar os saberes e a fé. Temos muito prazer em ver todo o reconhecimento e o respeito que a Irmandade da Boa Morte conquistou no mundo todo.

Como vocês se sentem com todo o reconhecimento da Irmandade da Boa Morte? 

A gente sente prazer. Antigamente a festa da Boa Morte só acontecia porque as irmãs saíam pedindo contribuição da população e a gente ouvia muito desaforo das pessoas. Com o tempo a irmandade foi ganhando reconhecimento. Hoje, o mundo todo conhece a gente, desde a presidência do país, até de pessoas de fora, de outros países, que vem em Cachoeira acompanhar a festa da Boa Morte. Vocês que são estudantes sempre vem procurar a gente para pesquisar sobre a irmandade. Isso é muito prazeroso. 

Como a senhora se sente fazendo parte da Irmandade da Boa Morte?

Eu sinto orgulho, eu sou católica e gosto de acompanhar a igreja e a novena, e prestigiar Nossa Senhora. A irmandade é uma coisa muito bonita, é formada pelas mulheres negras, essa cor que não desbota. A irmandade é união, e aprendemos a compartilhar tudo. Sabemos que a morte é a dona da vida e a vida nos fortalece.

Foto de destaque: Any Manuela Freitas

  1. Fonte: COELHO, José. Estado da Bahia: obra de propaganda Geral 1823- 1923. Empreza Brasil Editora. Rio de Janeiro. ↩︎