Pichação é manifesto para denunciar realidade social

Cultura do pixo transforma espaço urbano em mídia para criticar injustiças sociais; movimento ganha força em Cachoeira (BA).

Por Luis Pitanga (textos e fotos).

A pichação é utilizada como uma forma de protesto, um meio de dar voz aqueles que não são ouvidos pela sociedade e representantes políticos. Protestos contra a desigualdade social, as péssimas condições da educação e saúde e até contra o racismo e LGBTQIA+fobia podem ser vistos nos muros de cidades.

De acordo com registros históricos, as primeiras formas daquilo que compreendemos hoje como pichação no Brasil tem origem na década de 1960, época do golpe militar. Os pixos criticavam a ditadura e representavam a resistência contra o regime militar. Não havia preocupação estética com a estética das letras. Eram legíveis para que qualquer pessoa alfabetizada pudesse entender.

Em cada região do Brasil a cultura do pixo se desenvolveu de formas diferentes, assumindo características próprias de acordo com as realidades locais.  Na Bahia, surgiu o letrado baiano, caligrafia estabelecida pelos pixadores do estado. Bastante conhecido e apreciado, a tipografia apresenta as letras do alfabeto comum convertidas para uma estética da linguagem de rua, a linguagem do pixo. 

O pixador “Buko” afirma que o letrado baiano surgiu nos anos 1990 junto com o movimento Hip-Hop, em Salvador. Quem foi aprendendo passou a modificar os traços, deixando-os à sua maneira. Ele cita os artistas “Skank” e “Sinal”, ambos assassinados, como principais nomes que revolucionaram a tipografia do letrado baiano. 

Buko caracteriza a tipologia como um “laboratório de ideias”, onde cada pessoa tem seu tipo de letrado. A troca de folhas de papel entre os pixadores, nas quais são escritos os letrados, promove o desenvolvimento de novas formas de caligrafia.  A base estética do letrado baiano pode ser simples ou tribalizada.

Exemplo de Alfabeto do Letrado Baiano Simples. FONTE: SANTOS, 2018¹
Exemplo de alfabeto do Letrado Baiano Tribalizado. FONTE: SANTOS, 2018

O pixo construiu alfabetos alternativos e para entender é necessário estudar a história e as características singulares das diversas tipografias do movimento. O pixo se tornou uma fonte criadora de novas possibilidades estéticas para a comunicação artística. 

“Letra de forma, mano, eu não entendo nada. Eu passei oito anos na escola, oitava série. Eu só consigo ler pixo só. Sou meio analfabeto, mas a pichação dá pra entender”, afirma o pichador William, durante uma das intervenções no documentário PIXO, de 2009, dirigido por João Wainer e Roberto T. Oliveira.

Pixo e(´) arte – Enquanto o grafite passou a ser visto como arte contemporânea, as pichações ainda são vistas como bagunça, vandalismo e sujeira. Por muito tempo, existiu um padrão definidor do que é arte, baseando-se naquilo que é ou não belo. Com a ascensão da escola modernista no século XX, as perspectivas sobre o que é arte começaram a se desvincular dos paradigmas que prevaleciam na época.     

Ao buscar no dicionário o significado da palavra arte, é possível encontrar que a palavra representa a ação humana relacionada às manifestações de viés estético. O produto artístico deveria ser realizado por pessoas dedicadas a partir de percepções, emoções e ideias. O objetivo seria gerar o estímulo de consciência em quem admira a obra. Além disso, cada produção teria um significado. É possível encontrar essas características na cultura do pixo. A pichação é uma manifestação de ordem estética, podendo ser realizada por meio de percepção, emoção e ideias, com cada pichação possuindo um significado único e diferente, tendo o objetivo de estimular o interesse em diversos espectadores. Então, sim, a pichação pode ser considerada arte.

Para o pixador “B”, que atua em Cachoeira e é estudante de artes visuais, afirma que o pixo pode ser considerado arte. “Ele tem todos os mecanismos e modo de operação de análise que levam a identificar o pixo como arte, isso é incontestável. Tudo que vai contra é meramente enviesado. Mas, de forma particular, eu acredito que o pixo está fora desse circuito. O pixo não precisa e não necessita ser considerado arte para ser legítimo, para ter o impacto que ele tem”, conclui.

Crítica social – O impacto do pixo é notável, trazendo incômodo e forçando um problema a ser pautado e discutido. Bacharel e mestrando em ciências sociais pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Danrlei Moreira, que pesquisa sobre os “pixos da morte”, acredita que os pixos têm grande importância social. “A importância social do pixo é ser um meio de comunicação visual que perpassa a normatividade daquilo que é aceito visualmente, e choca, questiona. Pra mim, o pixo é um agente político, a importância dele é tal qual um militante, a depender do local que ele esteja”.

A pichação é uma forma de intervenção e promove transformação social. Buko relata que busca direcionar suas pichações em lugares que apresentam algum defeito estrutural, como uma forma de “pisca alerta”. “O pessoal problematiza porque tá riscado, mas o verdadeiro problema não é o risco, não é o que tá escrito ali, aquilo ali é tinta. O verdadeiro problema é o que tá em baixo, é a estrutura”

No caso de Cachoeira, Danrlei Moreira acredita que o aumento de pixos na cidade tem relação com o fortalecimento do movimento do rap e crescimento dos níveis de violência no município, que também promoveram “os pixos da morte”. “Os ditos Pixos da morte são pixos que retratam, falam sobre pessoas que foram assassinadas na cidade de alguma forma, seja por violência policial, ou violência de facção, qualquer tipo de coisa. Estes pixos estão sempre relatando o nome de jovens negros que foram assassinados. E os bairros que eles (os pixos) ficam são literalmente os bairros que essas pessoas eram crias”, explica.

Historicamente, a pixação é realizada nas partes mais degradadas das cidades como forma de crítica às desigualdades sociais e abandono dos espaços urbanos pelo poder público e iniciativa privada. A cidade de Cachoeira é reconhecida como “Cidade Monumento” nacional e desde 1971 é tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Mesmo com a normatização cultural do espaço urbano, o centro histórico apresenta um grau avançado de degradação de parte significativa das construções. 

O arruinamento de casas e prédios é tema das obras dos pixadores do município, que já reproduziram frases como “Cidade-ruína” em paredes do centro histórico, opondo-se à propaganda turística. Cachoeira passou a receber um significativo acervo de obras da cultura do pixo, expondo diferentes estilos de pichações. “Apesar de ser um lugar perigoso para lançar, justamente pela cidade ser toda tombada, ser uma cidade histórica, de uma forma geral é um lugar muito rico de pixo, por incrível que pareça. É uma cidade onde reúne pessoas de vários lugares da Bahia e de vários estados, então, se encontra vários estilos de pixo”, disse B.

Cachoeira – Entre os estilos de intervenção que podem ser vistos estão a tag, que traz, normalmente, o apelido do pixador escrito de forma estilizada, construída de uma forma subjetiva e local.

Tag do pixador Buko. Foto: Luis Henrique Pitanga.

Já o Throw Up é uma evolução das tags, em maior dimensão de forma robusta, com as bordas arredondadas. Geralmente feito só com uma cor ou só com contorno.

Throw up nos tapumes do Hotel Colombo, no centro de Cachoeira. Foto: Luis Pitanga

Bombing ou Bomb, de acordo com Buko, não era uma tipografia, e sim o ato de “bombardear” ilegalmente a parede com diversas tags ou throw up. Com o passar dos anos começou a ser associado como uma evolução do throw up, sendo mais trabalhado, utilizando diversas cores na produção. Mesmo feito de forma ilegal, o bomb por utilizar mais cores e demandar maior tempo no processo de produção, é considerado grafite.

Bomb nos tapumes do Hotel Colombo, no centro de Cachoeira. Foto: Luis Pitanga

A persona é o personagem criado pelo pixador. Muitas vezes é utilizado como referência direta ao vulgo do pixador. É como se o vulgo se tornasse um personagem. Por exemplo, em Cachoeira, existe o pixador “Pombo” que além das suas tags também pixa um pombo estilizado pelas ruas da cidade (foto em destaque nesta reportagem).

Os pixadores com seus estilos próprios ressignificam as paredes das cidades, transformando-as em uma grande tela branca pronta para ser utilizada. A pichação não pode ser reduzida ao simples estereótipo de sujeira. Pichação envolve camadas socioculturais que precisam ser observadas e estudadas.

¹ “Eu pixo, Você pinta: Desafios de uma contra estética visual, e o direito à cidade na disputa teórica e prática do espaço urbano em Salvador e região metropolitana” de Ruan Philippe Marques Melo Santos (2018).