Quando a vida começa?

Uma reflexão sobre a sobrevivência da mulher em uma sociedade patriarcal

Júlia Maciel                                                                                        

  8 de julho, Cachoeira- BA

Nesse último mês foi muito difícil ser mulher. Não que os outros meses do ano sejam fáceis.  Mas nesse mês de junho fomos mais uma vez lembradas do desprezo que se tem pela mulher no mundo. Presenciamos uma barbárie contra uma menina de onze anos que foi violentada, e quando se dirigiu à justiça em busca dos seus direitos foi mais uma vez torturada. Nesse mesmo período testemunhamos uma mulher ser exposta e agredida por ter tomado uma decisão que diz respeito a ela, mas que o mundo mais uma vez se sentiu no direito de violar sua vida por ser uma mulher. Falando em direito das mulheres, são poucos os que permanecem e os que são respeitados. Nos EUA o direito ao aborto legal foi extinto, mulheres podem ser condenadas a longos anos de prisão por decidir o que vai ser melhor para a sua vida.

Diante destes fatos, na frente do meu computador, sendo bombardeada diariamente por notícias de feminicídio, de agressões e de retiradas de direitos das mulheres, eu parei para refletir e pensar: Quando a vida das mulheres vai começar? Muitos diriam que ao nascer, mas poucos se lembram da violência que a mulher está sujeita na hora do parto, ou a violência que fez aquele ser vir ao mundo.  Então aquela menina já nasce em volta da crueldade e da triste realidade que é ser mulher numa sociedade patriarcal. Alguns diriam depois da primeira menstruação, quando uma menina se torna uma mulher. Mas ser uma menina não a exime de sofrer como uma mulher, de lidar com o machismo, a misoginia, e todos os tipos de horror. Podemos chamar isso de vida?

Percebe que em todos esses momentos estamos sujeitas a algum tipo de agressão? Estamos sempre vigilantes, nunca descansamos. É como se sempre estivéssemos em uma rua deserta e escura, e quanto mais a gente corre para sair desse lugar, mais nossos pés são fixados ao chão. Isso não é vida, viver não pode ser sinônimo de medo. Então as mulheres não vivem? Não, infelizmente não conhecemos a vida, a nossa realidade é outra. Nós sobrevivemos, somos jogadas aos leões todos os dias, e todos os dias uma das nossas morre pelo fato de ser mulher. 

É desolador perceber que a vida nunca vai começar, que tudo não passa de sobrevivência, você tem que sobreviver a um mundo que lhe odeia, e sobreviver ao ódio que o mundo lhe ensinou a ter de você mesma. Suas decisões nunca serão levadas em conta, sua verdade nunca será suficiente, sua dor nunca será legitimada, sua capacidade nunca será reconhecida e as suas fraquezas sempre serão expostas e exploradas. Como diz Teresa de Lauretis  no seu livro Através do espelho, “A mulher está tão ausente quanto prisioneira: ausente como sujeito teórico, prisioneira como sujeito histórico”.

Como podemos falar que a mulher vive se no intervalo em que estou escrevendo este texto mais de 240 mulheres são agredidas? No Brasil, oito mulheres são agredidas por minuto, muitas dessas são violentadas todos os dias. Seria muito cruel chamar isso de vida, é muito cruel falar que isso é a vida.

Esta reflexão me fez voltar ao ano de 2019, na quinta-feira do mês de novembro, quando acordei com a notícia de que Elitânia de Souza da Hora, 25 anos, estudante do CAHL tinha sido assassinada pelo ex- namorado. A morte nunca esteve tão perto. Eu fazia o mesmo caminho que ela, estudava na mesma universidade, não a conhecia, mas tínhamos algo em comum, ser mulher em um mundo que nos odeia. Não tinha como não pensar que poderia ser eu no lugar dela, ou que o meu destino pode ser igual ao dela.   Toda essa violência é legitimada por uma justiça que não age, uma justiça feita por e para a proteção dos homens. Mulheres demoram vidas para que seus direitos sejam reconhecidos e aplicados, e a qualquer momento eles podem ser revogados. Até hoje direitos básicos como integridade e autonomia dos corpos, ao voto; a ocupar cargos públicos; a trabalhar; a salários justos e igualitários, e à educação são negados para diversas mulheres. É como se déssemos um passo para frente e cinquenta para trás. 

Existe futuro para as mulheres? Há como existir um futuro sem um presente? Ser mulher é viver num limbo, em um não lugar, em um não pertencimento. Quando a vida começa? Talvez a minha não comece, talvez a sobrevivência seja a única opção no momento. Mas sei que o coletivo tem que continuar lutando pelas próximas que virão. Para que elas tenham o direito de desfrutar a plenitude da vida, e que elas não passem pela dor do medo e da incerteza, para que elas não precisem sobreviver, e sim: VIVER.