Um correio elegante de Paraty para Ituberá: ‘Se eu pudesse trazer meu São João de lá, eu traria’

Do sudeste, mãe e filha baianas relembram histórias que viveram na terra natal e contam como é o período junino no novo endereço

Matheus Ruffino

As recordações juninas partem de Paraty, patrimônio histórico mundial no Rio de Janeiro, e serão embaladas com saudosismo por Lu e Raiana Bispo. Foto: Luciana Serra

Passou o Carnaval. O relógio biológico do nordestino dá a largada na contagem regressiva para o próximo evento. Quatro meses separam um do outro. Roupas e adereços começam a ser planejados pelos festeiros a fim de não correr o risco de repetir alguma peça. Estamos falando de São João, comemoração tradicional estendida pelos dias de junho e que também relembra a religiosidade por trás de Santo Antônio e São Pedro. Tendo em vista dois anos de pandemia e isolamento social, a festividade junina reuniu quase 2 milhões de pessoas espalhadas pela capital e pelo interior, ao tempo que movimentou a economia em cerca de R$1 bilhão de acordo com a Secretaria de Turismo da Bahia e Bahiatursa.

A partir de agora, seguiremos com a festa para o íntimo do estado baiano, mais especificamente Ituberá, localizado na região da Costa do Dendê, com 28.740 mil habitantes apontados pelo IBGE/2020. Um município com pouco mais de 165km de distância de Salvador. As recordações juninas partem de Paraty, patrimônio histórico mundial no Rio de Janeiro, e serão embaladas com saudosismo por  Lu e Raiana Bispo, mãe e filha que falam do São João da Bahia com saudade e nostalgia.

A gente se programava o ano todo. É uma data muito esperada”, disse Lu, que prefere ser identificada dessa forma.

Lembranças de uma tal derrota envolvendo a rainha do milho na escola, passando pela feitura dos quitutes típicos, até os perrengues para aproveitar um show de forró foram trazidos pelas ituberaenses com o gentílico quase paratiense.

Baiana Lu Bispo, natural de Ituberá, relembrou histórias do São João da terra natal – Foto: Luciana Serra 

Risonhas e espontâneas no salão de beleza que administram juntas, numa rua paralela à avenida principal de Paraty, as profissionais reservaram na agenda um horário não para trabalhar, mas para contar que o São João está enraizado na identidade de cada uma delas e que as recordações não foram abandonadas na estrada que as separam da terra natal.

É uma festa que agrega muito à nossa cultura. Se eu pudesse trazer meu São João de lá, eu traria”, concluiu Lu.

Sem conhecer a cidade e incentivada por um primo que dizia que lá era bom para ganhar dinheiro, a matriarca se mudou sozinha para Paraty no início dos anos 2000, na busca por melhor oportunidade de emprego e deixou três filhos em Ituberá aos cuidados da mãe. Essa realidade não é exclusividade da Lu, profissional da estética e beleza, mas de muitos brasileiros que encontram dificuldades nas próprias cidades e tentam novas oportunidades no eixo Rio-São Paulo. A cena pouco mudou com o passar dos anos.

Foi o que mostrou o Censo 2010, estudo mais atualizado e voltado para migrações, afirmando que 35,4% da população brasileira não residia na cidade natal, se dividindo nas capitais São Paulo (8 milhões de pessoas), Rio de Janeiro (2,1 milhões), Paraná (1,7 milhões) e Goiás (1,6 milhões). Por ser um município turístico, Paraty sempre recebeu muitos estrangeiros que se identificavam com a geografia marítima e arquitetura e acabavam fazendo do lugar a própria moradia. Pode-se dizer que há, desta maneira, dois perfis de novos moradores: os endinheirados nômades e aqueles que tentam a sorte. A bem da verdade é que nem só de dados estatísticos vive o São João, não é? Canjica, milho assado, bolo de aipim e o insubstituível licor com variados sabores fazem falta no paladar das baianas que, desde que se mudaram, não conseguiram reproduzir com o mesmo sabor o que é feito lá na Bahia.

Para esclarecer logo de cara essa história de mungunzá versus canjica, Raiana explicou a diferença entre as iguarias, que em Ituberá muitas são vendidas de porta em porta:

Aqui eles falam que canjica é aquela branca e lá não é, é a de milho. Pega o milho, rala, coa, tira o bagaço, rala o coco (…) Lá pra gente essa branca é mungunzá.

Comidas típicas do arraiá junino feito na Capelinha, no Centro Histórico – Foto: Luciana Serra/ PMP (Prefeitura Municipal de Paraty)

Os pratos típicos, assim como a decoração e as fogueiras, são tradições preservadas por muitos, principalmente pelos mais velhos. Alguma comida e outra elas até conseguem driblar com produtos paralelos do sudeste, mas o que as duas sentem falta de comer durante esse período é o amendoim que em Paraty não tem. O de lá é cozido e consumido direto da casca de coloração amarronzada.

Licor é outro assunto delicado porque em Paraty é produzido uma infinidade de licores e cachaças em alambiques espalhados pela cidade, o que supriria tal carência nas noites frias de junho.  Mas não é bem por aí. As bebidas são diferentes, a começar pelos tradicionais que Lu puxou da memória:

Licor de jenipapo, ‘pau nas coxas’, passas e ‘me esquece’. Esse ‘me esquece’ ele é tipo com jabuticaba.

A outra bebida com nome curioso lembra a tradicional cachaça Gabriela, com cravo, canela e açúcar queimado. Pelo menos o licor fino paratiense tem ligação com o romance de Jorge Amado, que teve três adaptações em novela, sendo a mais célebre aquela da década de 1970, com Sônia Braga subindo o telhado da casa usando um vestido estampado. O filme de mesmo nome, embora ambientado em Ilhéus, foi gravado em Paraty no início dos anos 1980.

Já que estamos falando em cultura, no São João o que não falta é música. Trazemos a conterrânea Maria Bethânia, cantora nascida em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo, que uniu musicalidade e dados sociopolíticos lá no início da carreira, quando incorporou dados da Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) na canção “Carcará”, clássico do cancioneiro nacional que apontou o movimento do êxodo rural durante aqueles anos. Ela declamou, numa apresentação antológica em 1965: “Em 1950, mais de dois milhões de nordestinos viviam fora de seus estados natais. 10% da população do Ceará imigrou. 13% do Piauí. 15% da Bahia. 17% do Alagoas.” A intérprete também canta, só para exemplificar, a festividade e a alegria do período em “São João, Xangô Menino”, composição de Caetano e Gil.

“Olha Pro Céu”, de Luiz Gonzaga é um das músicas mais conhecidas do São João, assim como “Festa do Interior”, de Moraes Moreira, ambas que não sucumbiram à modernidade dos tiktoks e ainda são bem tocadas nesses meses. Mas o cenário tem mudado. Tanto a mãe quanto a filha defendem que cada festa tem o próprio estilo musical, e nessa quem manda é realmente o forró. A Jega Elétrica, trio tradicional puxado em Ituberá, que consiste em enfeitar o animal, ligar duas caixas de som e seguir em procissão nada religiosa é uma programação indispensável no contexto cultural.

O bloco da jega elétrica era muito famoso. É um carnaval. Todo mundo atrás do jegue dançando, bebendo cerveja e licor.

Raiana, mesmo de outra geração, também preserva o tradicionalismo quando o assunto é forró durante a festa.

Tem que tocar. Não toca tanto, mas ter que ter pra ser aquele São João raiz e continuar com as características da tradição. Eu sempre fui fã de Calcinha Preta.”

Outro ponto muito comum no São João da Bahia é o “êxodo contrário”, ou seja, quem mora nas cidades mais populosas se espalha pelo interior do estado em busca de rever parentes e aproveitar melhores experiências. Lu fez isso algumas vezes, mas teve uma que marcou.

Raiana Bispo, fã de Calcinha Preta e a verdadeira rainha do milho – Foto: Luciana Serra 

O destino da aventura foi a cidadezinha Igrapiúna, com 16 mil habitantes, vizinha de Camamu e até de Ituberá. As atrações musicais sempre ditam, em média, se o São João daquele município vai ter movimentação ou não. Lu juntou outros amigos, como sempre fez, e seguiu para o endereço interessada no show do grupo Asas Livres, banda por onde passou o cantor Pablo, hoje nacionalmente conhecido pelas músicas “Porque Homem Não Chora”, “Vingança do Amor” e muitas outras. Igrapiúna estava lotada no aguardo da principal atração da noite. Tudo de bom, muito arrocha, “pau na coxa” e diversão. No fim começou o perrengue.

Na hora de vir embora o ônibus não queria parar de jeito nenhum para entrar mais gente. Uma briga danada. Só sei que nesse dia nós viemos andando até certo pedaço. Andamos mais de 20km para se afastar da multidão e o motorista olhar, parar e dizer: ‘Olha os coitados’.

Só existia garantia para ida, o retorno era sempre uma dúvida – fato que não impedia viver o melhor do São João.

Hoje com 26 anos, um registro da comemoração da Rainha e do Rei do Milho de 2003. O branco do vestido de Raiana combinava muito com a faixa. Foto: Arquivo pessoal 

            A filha também tem outra história um tanto sofrida e totalmente motivada pela influência da mãe, vale dizer. Foi ainda na fase primária quando era costume nas escolas da cidade eleger a rainha do milho, um evento que mobilizava parte das alunas numa grande competição para venda de rifas. Quem vendesse mais, se tornava a rainha e recebia a faixa numa comemoração. Não era disputa de beleza. A brincadeira tinha uma única regra: precisava vender separadamente cada cupom. Raiana seguiu a instrução e mobilizou a família ao lado da mãe, mas a concorrente agiu diferente.

Eu fiquei em segundo lugar porque o pai da primeira colocada comprou o lote todo e isso não podia. Depois de um tempo descobriram.

A corrupção e o jeitinho brasileiro não dá trégua nem em festa junina infantil. Todos sabem quem foi a verdadeira rainha do milho de Ituberá.

 Mãe e filha planejam visitar a cidade natal novamente – a mais nova sem muita empolgação. Em 2014 Lu esteve lá, mas sentiu que o clima não era o mesmo de antes. Um elo que une a todos durante as comemorações de São João são as mães e avós. No final das contas, elas são os fios condutores que puxam filhas, netas, sobrinhos (…) espalhados pelo Brasil. Os pratos típicos, as bebidas, o ritmo do forró fazem figuração no cenário em que elas então no centro.

“Depois que eu perdi minha vó, eu perdi um pouco a vontade de ir para minha cidade.” Com a Lu, o sentimento é parecido. “Eu tive lá em Ituberá logo depois que minha mãe faleceu e eu não entrei na casa. Eu passei na frente. Ela era quem juntava todo mundo.”

A fogueira fica em ponto de brasa, mas ainda acesa demostrando que não acabou.

O show tem que continuar, a jega deve continuar elétrica e o licor precisa esquentar as goelas. Embora Paraty tenha seus circuitos juninos, como realizado na tradicional Igreja Nossa Senhora das Dores, a famosa Capelinha construída em 1800 por mulheres da aristocracia paratiense, como no bairro Caborê e Ilha das Cobras, a comemoração é muito diferente: das comidas, aos ritmos.

Grupo Cirandeiro de Paraty animou os festejos no bairro Barra Grande, zona rural do município. Foto: Luciana Serra/ PMP

No palco, cirandeiros cantam cantigas tradicionais; na plateia círculos e passes de chapéu harmonizam à performance. Bolo de chocolate, empadinhas, churros e caldos alimentam os paratienses em noites frias com céus estrelados. Quem é da cidade está habituado a esse estilo de celebração. No caso das baianas, mesmo morando há muitos anos, é compreensível a saudade e a nostalgia que sentem.  

A tradição do São João é uma marca que atravessa gerações na Bahia. Foto: Luciana Serra 

Repórter Matheus Ruffino entrevistou as baianas direto de Paraty. Foto: Luciana Serra